O cinema da liberdade
Carolina Soares*
“Fim à liberdade!”, sentencia o oficial francês, na primeira cena de O fantasma da liberdade. O caráter simbólico dessa cena diz muito da temática do filme e de toda a obra de Buñuel. É a sociedade burguesa que vemos retratada e ironizada nos filmes do diretor espanhol. A Revolução Francesa demarca a ascensão dos valores burgueses, que, para Buñuel, representam a censura, o moralismo, a sublimação da poesia, dos sonhos e desejos do ser humano. Portanto, o grito que proclama o fim da liberdade é o brado da burguesia, decretando que em seu seio não há lugar para ser livre.
Logo no começo do filme, Buñuel situa o espectador no espaço e no tempo, dando uma falsa impressão de continuidade, apenas para desconstruí-la nas cenas seguintes. O manifesto do cinema proposto pelos surrealistas determina que o espaço-tempo não deve seguir a trilha do princípio de realidade do cinema clássico, de tendência naturalista, mas reproduzir a articulação dos sonhos, caracterizada pela livre associação.
Inserindo o sonho no discurso cinematográfico, Buñuel – e outros diretores herdeiros de seu legado, como David Lynch – procura encontrar um cinema que seja a expressão de uma realidade mais profunda e abrangente, mais real do que o arremedo de realidade produzido pela verossimilhança da decupagem clássica. Os surrealistas defendem uma estética cinematográfica em que o concreto e o sonho se misturam, se completam, proporcionando uma visão integral da realidade, mais poética, mais subjetiva, ao incorporar às suas imagens a dimensão do desejo. Em outras palavras, os surrealistas buscam um cinema libertador.
Conforme entendem vários psicanalistas, como Freud e Arnheim, o cinema é a linguagem que tem maior afinidade com o material trabalhado pelo inconsciente. As “condições de representabilidade” que governam a expressão do desejo no sonho encontram no cinema o seu modelo mais próximo.
O cinema surrealista, ao imitar a articulação dos sonhos, a lógica de uma experiência que é o “preenchimento do desejo” por excelência, insere a dimensão do desejo na experiência cinematográfica, não por um simples processo de identificação e gratificação, mas pela ruptura manifesta na própria estruturação do filme, pela forma como a realidade é apresentada ao espectador. É o desejo de subversão da realidade afirmado através do onírico. O discurso surrealista é um ato poético de liberação em face das repressões sociais, subvertendo as convenções através do imaginário.
A linha de condução narrativa de O fantasma da liberdade é formada por um conjunto de situações aparentemente desconexas, que se interligam por meio de uma personagem em comum entre as sequências – o figurante de uma cena passa a ser o protagonista de outra. Mas todas elas servem ao mesmo propósito: denunciar as prisões a que estamos atados, prisões estas que se manifestam como convenções sociais. Um dos episódios mostra uma família sentada à mesa, conversando. Tudo muito normal, não fossem assentos sanitários em vez de cadeiras o que se vê ao redor dela. Quando sentem fome, os comensais vão até um compartimento fechado, o que seria um banheiro, e lá fazem suas refeições. Nesta, como em todas as demais cenas, fica clara a crítica à hipocrisia e à incoerência transbordante da relação dicotômica entre desejo e convenções sociais.
O filme frustra as expectativas do espectador todo o tempo, como forma de agressão ao senso comum. Nada do que acontece é trivial, rotineiro, previsível. A ação se dá de modo que a descontinuidade e o nonsense instauram-se na sucessão de gestos e cenas. Buñuel alia humor e ironia em uma sátira das convenções burguesas.
O nome do filme faz referência a uma liberdade que não existe, que é apenas uma presença imaterial, um fantasma. Uma liberdade que só pode ser experimentada como aparição, visão ou sonho. A liberdade, tal qual o desejo, se manifesta nas profundezas do inconsciente, ou do imaginário. No entanto, o fantasma da liberdade do título pode ser o próprio cinema, sua experiência libertadora, à qual Buñuel creditava um poder transformador da sociedade.
O cinema é o fantasma que assombra as convenções sociais, libertando a mente humana da repressão e das jaulas psíquicas, abrindo o maravilhoso mundo do desconhecido, daquilo que não se encontra ordinariamente, da poesia libertadora da fantasia. O cinema, para os surrealistas, é sinônimo de libertação. Então, que venha a liberdade!
* Carolina Soares é membro do projeto de extensão "Cine-UFG, debates".
3 Comentários
Bunuel é bom demais. Eu vi vários filmes e fiquei animado demais em conhecer ainda mais seu longo trabalho.
Professor Lisandro Nogueira.
Sou aluno do curso de História da Universidade Estadual de Goiás e estou estudando história regional, a cidade de Goiânia e seus acontecimentos inclusive o césio 137, e gostaria de assistir o filme coma minha turma mas não sei onde posso encontrar. Gostaria de obter informção quanto ao filme. se alguém poder me orientar eu agradeço.
Paulo Sérgio Arantes.
O filme "O fantasma da liberdade" pode ser adquirido na www.livrariacultura.com.br ou 2001video.com.br
Em película: embaixada da Espanha.
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