terça-feira, 20 de julho de 2010

Entrevista com Guel Arraes

Guel Arraes faz a sátira da esquerda em 'O Bem Amado'

Diretor diz que foi difícil construir um vilão esquerdista e conta que mudou o final da obra de Dias Gomes para não renegar suas convicções políticas

Lucila Soares

O diretor Guel Arraes na pré-estreia de O Bem Amado

O diretor Guel Arraes na pré-estreia de O Bem Amado: sátira da esquerda (AgNews)
"Os intelectuais, que normalmente são de esquerda, deveriam ser críticos. Mas no máximo fazem caricatura, fazem crítica de colega. Registram o que consideram exagerado, fora do tom, antiquado. Eu nunca vi comédia sobre o que está sendo abordado em O Bem Amado".

Guel Arraes é dono de uma carreira brilhante. Aos 56 anos, tem no currículo programas inovadores e de boa audiência, como Armação Ilimitada, TV Pirata, Comédia da Vida Privada e filmes de grande bilheteria, como O Coronel e o Lobisomem, O Auto da Compadecida e Lisbela, a Prisioneira. O Bem Amado, filme baseado na peça de Dias Gomes que deu origem à novela e à série da TV Globo, poderia ser apenas mais um típico produto da lavra de Guel, possivelmente mais um sucesso de público. É uma comédia cara, de produção caprichada, com elenco estelar.



Marco Nanini é Odorico Paraguaçu, o prefeito da lendária Sucupira, que se elege tendo como principal compromisso de campanha a construção de um cemitério na cidade - e acaba sendo, ele mesmo, o defunto inaugural. Para Guel, no entanto, O Bem Amado é mais do que mais um filme. É a realização de um projeto antigo, de forte motivação pessoal. Filho de Miguel Arraes, um dos ícones da política brasileira, de quem herdou até o nome, ele planejava há anos fazer uma comédia do poder, uma sátira que reunisse sua sua experiência de diretor de comédias e sua vivência dos bastidores da política.


Concretizar esse projeto envolveu um desafio particular. Ao atualizar o texto de Dias Gomes, Guel deu-se conta da necessidade de incluir a esquerda na mira de sua sátira. Vladimir Castro (Tonico Pereira), o opositor de Odorico Paraguaçu, é um vilão de esquerda. Dono de jornal, almeja o poder e acredita que, pelo bem do povo, vale tudo para chegar lá. Chama propina de “desapropriação do capital burguês em favor da revolução” e diz que o que o diferencia da direita é mentir por uma causa justa (veja o trailer exclusivo).


Foi um processo difícil para alguém que, como filho de Miguel Arraes, governador de Pernambuco cassado, preso e exilado depois do golpe de 1964, formou-se dentro dos cânones da velha esquerda brasileira. Na entrevista que se segue, Guel fala do filme, que estreia no próximo dia 23, e da construção do que chama de “cinema popular brasileiro”, ideia inspirada na MPB. “A música popular brasileira tem um leque enorme de opções. É uma arte de grande comunicação, que não impede a experimentação. Mas no cinema é diferente. A tradição do cinema autoral criou uma vergonha de ter público.”

Por que um filme de sátira política?
Tem a minha motivação pessoal, de ser um diretor de comédia que viveu os bastidores da política. Mas tem também a constatação de que, apesar de oferecer uma matéria-prima riquíssima, com tantos personagens emblemáticos, caudilhos, ditadores civis e militares, líderes carismáticos, a política brasileira é um tema muito pouco explorado. Eu queria fazer uma comédia do poder, cheguei a planejar encenar Ubu-Rei (clássico do francês Alfred Jarry, de 1894). Seria um ótimo retrato da ditadura brasileira.

E por que esse projeto de tão longa maturação está se concretizando agora?
Acho que a política ganhou interesse nos últimos anos Quando as pessoas dizem “não gosto de política, político é tudo safado”, isso não quer dizer que elas não se interessem pelo tema. Houve uma educação política, as pessoas se tornaram vigilantes, denunciam os maus políticos. Uma sátira como essa, para mim, atende a uma demanda social. Vejo como uma espécie de serviço fazer rir com política. Não por causa da conjuntura imediata, eleitoral, mas pelo interesse pela política que acredito que a democracia tenha devolvido às pessoas. Esta é, aliás, a minha grande ansiedade em relação ao filme. Ele irá bem ou não dependendo do acerto dessa minha tese.

O Bem Amado original é de 1962, um período democrático, em que você era criança e seu pai, governador de Pernambuco. O filme se passa nesse mesmo ano, inclusive com referências muito datadas, como a renúncia recente de Jânio Quadros e as incertezas do governo João Goulart. Por que essa volta aos anos 1960, e não uma trama atemporal como foram a novela e a série da TV Globo?

Esse período de 1962 está na base da minha formação política, da minha atitude como cidadão, e também na referência familiar. A ideologia marcada pela oposição entre esquerda e direita, progresso nacional, luta pelo povo, são bandeiras da minha vida inteira. Essa coincidência pesou para que eu fizesse um filme datado. Mas ele é situado numa época pouco conhecida da maioria das pessoas hoje. Quem não conhece vai pensar “isso deve ser verdade, porque tem essas referências históricas aqui. E parece um pouco com hoje em dia”. Até porque, matreiramente, a gente atualizou alguns mecanismos políticos e alguns personagens, para torná-los mais reconhecíveis, e permitir a percepção de que “começou aí”.

Quais as dificuldades que você encontrou na atualização da trama?

A questão “séria” do filme é: “Existe ainda ideologia, ainda existe esquerda e direita, ainda existe a fronteira da justiça social ou não?” Do ponto de vista da posição política, isso foi o que mais me preocupou. Como eu ia fazer? Eu sabia que tinha que ter um personagem de esquerda diferente do que tinha no Dias, porque senão ia ficar chutando cachorro morto, fazendo uma crítica velha à maneira tradicional de se fazer política no Brasil. O Dias não ia fazer essa crítica em 1962, quando ainda existia a utopia da esquerda. Muito menos em plena ditadura militar. Mas agora não, eu queria, e sabia que precisava ter um personagem negativo.

Tive muita saudade da minha tia Violeta (irmã de Miguel Arraes, que ficou conhecida como a “Rosa de Paris” pelo apoio que deu aos exilados brasileiros durante a ditadura militar). Era a pessoa para quem eu gostaria de ter mostrado o filme. Ela tem abertura suficiente para aceitar e também saberia me dar um limite. Ela ainda estava viva quando eu estava fazendo o roteiro (morreu em 2008), e eu pensava muito nela. Sentia o conflito de ter uma postura como artista, de ter uma posição crítica em relação à esquerda sem renegar tudo o que vivi.

Foi por isso que você mudou o final de Dias Gomes?
Sim. Quando ele termina a peça no cemitério com o cara da oposição fazendo o elogio fúnebre do Odorico Paraguaçu, o personagem não é de esquerda. É um sujeito vagamente anarquista, que não é candidato a nada. Então não fica tão chocante quanto a esquerda fazendo o panegírico da direita. Quando vi o filme pronto, fiquei muito nervoso. Vi que estava dizendo algo em que não acredito, que político não presta, que esquerda e direita são a mesma coisa, que não existe mais ideologia nenhuma. Não era isso que eu queria, não gostei do resultado. Mudei o fim, e mudei com o filme pronto, coisa que nunca tinha feito antes. Felizmente, a solução para essa angústia era um personagem. Neco Pedreira (Caio Blat), filho do esquerdista Vladimir, é uma espécie de terceira via. É jovem, idealista, crítico às práticas da esquerda. Aí inventei aquele salto para o movimento das Diretas Já, aproveitei o personagem jornalista para ser o locutor e disse o que queria dizer: a solução está na democracia.

Por que é tão difícil criticar a esquerda?
Não sei. Quando comecei a mergulhar nesse projeto da sátira política, saí em busca de referências. Achava que encontraria um romance, uma peça de teatro, alguma obra que satirizasse a esquerda. Não encontrei. Os intelectuais, que normalmente são de esquerda, deveriam ser críticos. Mas não são. Fazem caricatura, fazem crítica de colega. Registram o que consideram exagerado, fora do tom, antiquado. Eu nunca vi comédia sobre o que está sendo abordado em O Bem Amado, a lógica de qie os fins justificam os meios, de que alguém pode ser dono da verdade, de que vale tudo porque você vai chegar ao poder para fazer o bem à maioria. Essa ideia dramatizada em comédia eu não achei. Enquanto que o personagem do conservador existe em vários lugares. O Odorico é uma síntese genial do político conservador, mas ele aparece em muitas outras obras.

Seus filmes têm sido classificados como muito comerciais. Dizem que na TV sua produção é ousada, criativa, e que seus filmes são "cinemão".
Tirando Romance, um filme que eu não pensei para a televisão, os outros foram intencionalmente comerciais. Talvez eu esteja encerrando esse ciclo. O Bem Amado é quase um filme tardio. Mas o que eu quis foi trazer para o cinema o know how que esse grupo com o qual eu trabalho (Jorge Furtado, João e Adriana Falcão, Cláudio Paiva, entre outros) adquiriu na televisão, que é tentar fazer produção comerciais, de grande público, com interesse artístico. O cinema alternativo tem que existir. Mas há equívocos. Vou dar um exemplo simples. O grande dogma do cineasta é que ele tem que escrever seu roteiro e dirigir. Acontece que um bom diretor, um bom realizador, não é necessariamente escritor. E a obrigação de escrever seu próprio roteiro resulta em algumas coisas horríveis. É terrível se obrigar a fazer uma obra original. Qual o problema de fazer adaptação? Por que eu vou escrever outro Bem Amado, se já existe um, e é bom? O cinema de autor cria um trilho difícil. Você tem 60 filmes alternativos, 20 que procuram o público e cinco que encontram. Alguma coisa está errada.
O "cinema popular brasileiro" que você defende seria a saída? O que é isso exatamente?
A gente tem uma música popular brasileira muito viva, com um leque enorme de opções, desde os cults, os sertanejos, Caetano que transita pra cá e pra lá. É uma arte popular de grande comunicação, que não impede a experimentação, que é um modelo. Na música, “popular” não é pejorativo. O Pedro Cardoso (ator) andou falando na criação de um teatro popular brasileiro. E eu pensava: teatro é difícil, mas cinema popular dá para fazer. E dá pela tradição de televisão que a gente tem. Desde 1964, a TV brasileira produz ininterruptamente, ali começaram a surgir obras populares e interessantes.

Eu acho inclusive que na retomada da produção cinematográfica no Brasil, a novidade está mais no cinema comercial, popular do que no cinema experimental. O cinema alternativo não chegou a ser tão interessante quanto o Cinema Novo. E o que a gente tinha como filme popular era filme infantil, Xuxa. Eventualmente surgia um Dona Flor. Hoje você tem um leque, que vai de Cidade de Deus, um filme poderoso, a Se eu fosse Você. O Brasil produz 70 e poucos filmes por ano, mas cinco filmes seguram 90% da bilheteria brasileira. Eu acho que tem problemas, claro, de financiamento, de distribuição. Mas também tem muito menos diretor e produtor procurando o público do que deveria existir. A tradição do cinema autoral criou uma vergonha de ter público.


* publicado na revista Veja em 16.07.2010


 

1 Comentário

Pedro e Patricia disse...

Pessoal,

O "chefe" vai 'sumindo" aos poucos e pede sempre a minha colaboração para o blog. Deixou tarefas, como sempre. A lista de posts e uma certa liberdade para o auxiliar luxuoso. Ou seja, isso significa auxilio sem remuneração. O luxuoso é a ausência do larjan. Mas vamos cumprir as tarefas com a ajuda da Patricia.

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