sexta-feira, 23 de julho de 2010

À prova de morte (em cartaz)

 AS MULHERES DE TARANTINO



 AS MULHERES DE TARANTINO

Fabricio Cordeiro*

Assim como Truffaut, Tarantino parece traçar cada vez mais um pontilhado para se tornar, ao seu estilo, um “homem que amava as mulheres”. Death Proof percorre a tela como uma baita machadada na nuca, com todo o charme do B e do (s)exploitation que o filme, ao lado do Planeta Terror do chapa Robert Rodriguez (os dois formam/formaria a double feature Grindhouse), tem o prazer de honrar. Porém, acabada a sessão, prevalece a feminilidade dominante tão presente na obra pós-Cães de Aluguel de Tarantino.

Quando falamos no B genuíno e no exploitation, é preciso lembrar que são, hoje, raças extintas, pertencentes aos indomáveis e por vezes incautos anos 70. Tarantino, um 747 de referências e conhecimento cinéfilo, traz o máximo dessa experiência para um filme que, vindo dele e de um estúdio, tem como arcar com a homenagem. Com orçamento, Tarantino resgata o pobre e o tosco, seu Death Proof exibido com calculadas falhas de filmagem, pedaços ausentes de filme, imagens riscadas, erros de montagem, ruídos e cortes abruptos. Uma delícia.

Na verdade, Tarantino (re)utiliza tais características na primeira metade de seu longa de duas horas. Temos um grupo de moças para cada hora, separados por 14 meses. Em ambos os casos essas moças serão ameaçadas por Stuntman Mike (Kurt Russell, na sua melhor presença desde parcerias com John Carpenter), um dublê de perseguições automobilísticas que tem como arma o seu carro “à prova de morte”. Fetiche pelo elemento carro tem admirações masculinas e femininas dentro de Death Proof, e Tarantino usa isso para, entre tantas citações, nos lembrar de filmes como Vanishing Point, título mencionado numa longa conversação que parece criar versão feminina da discussão inicial de Cães de Aluguel, incluindo movimentação da câmera. Vanishing Point ainda ganhará referência visual numa corrida final.

Antes que o feminino esmague o masculino, Death Proof deixa claro, como boa fotocópia dos gêneros que bebe, come e fuma, que a câmera é guiada por um pinto. Uma bunda de shortinho empinada para a câmera, uma lap dance, os pezinhos que Tarantino enxerga com tanto carinho e despudor, insinuações de uma cheerleader estuprada (o mesmo estuprador de moças em coma de Kill Bill), e por aí vai...

Tanto em imagem quanto em leitura, o ponto alto da primeira metade talvez seja uma açougante batida de carro, cena que demoraremos a ver outra semelhante e que ganha contornos sexuais numa sensata leitura do xerife local. Crash, de David Cronenberg, salta piscando néon na memória.

Passada uma hora de metragem, Death Proof passa a ser menos de outros e mais de si mesmo, pelo menos em como a imagem é tratada. Referências continuam, e se o carro desse novo bando de moças é uma versão quatro rodas de moto-uniforme da Noiva em Kill Bill (por sua vez referência a Bruce Lee e seu macacão amarelo-e-preto), Kurt Russell pisca para Antonioni e seu Blow Up numa cena em que fotografa as meninas.

As quatro novas moças, logo somos informados, trabalham num filme e estão de folga. Duas delas são, assim como Stuntman Mike, dublês. Uma delas, a neozelandesa Zoe, protagonizará perigosa e curiosa cena num Dodger em altíssima velocidade, com posição, prazer e situação lembrando algo de sexual. Stuntman Mike entra em cena em dado momento, e o que vemos é Tarantino promovendo algum tipo de orgia entre pessoas, carros e natureza nessa perseguição da qual ninguém deseja o fim, que chega no curto e alegremente grosseiro desfecho “acerto de contas” já previsto.

Em 2007, Tarantino disse em Cannes que fez Death Proof pensando no slasher, e de como filmes do gênero tinham na mulher a principal representante da força e da sobrevivência. Usou O Massacre da Serra Elétrica, Sexta-Feira 13 e Halloween como exemplos, e, vendo Death Proof, seus paralelos de cinéfilo apaixonado fazem total sentido, mais uma vez. Também pensei em I Spit On Your Grave, que já teve um casinho com Kill Bill, e aqui me fez presente mais num sentido estético e, novamente, no muque feminino sobre alguns bagos.

Interessante que as mulheres de Tarantino são observadas por ele com delicadeza e brutalidade alternadas, às vezes misturadas. Surgem e revelam-se não somente mulheres que indiscutivelmente são, mas fêmeas e donzelas conquistadoras.
..
 * Fabricio Cordeiro é membro do Projeto de Extensão "Cine-UFG, debates".

Twitter: @fabridoss

5 Comentários

Victor Hugo C. Caldas disse...

À prova de morte é sexy, abusado e divertido. Outro ótimo filme de Tarantino. Bom texto tb! Lembra um pouco a frase de um crítico, acho que foi o Inácio Araujo, que disse: "Às vezes Tarantino nos lembra que o cinema é pura e simples diversão".

Expedito Gomes disse...

Victor Hugo,

Acho que o Inácio Araujo não falou tudo do Tarantino. Ele é mais que diversão. Faz um cinema bem crítico, ácido e mesmo assim diverte. Mas não é só diversão, não.

Rodrigo Cássio disse...

"Antes que o feminino esmague o masculino, Death Proof deixa claro, como boa fotocópia dos gêneros que bebe, come e fuma, que a câmera é guiada por um pinto."

haha. Muito boa a frase, Fabrício.

Expedito, concordo com você. O Tarantino não é só diversão. Muito ao contrário disso.

Abraços.

João A Fantini disse...

Boa Fabricio! eu, tolo, assistindo ontem o filme e pensando o que a camera do cinema japones tinha com aquilo...
tem razão: é pinto mesmo!

Lisandro disse...

Como é possivel afirmar que "à prova da morte" é um filme menor do Tarantino? Fabricio acertou com sua acuidade critica: boa visada!!

Lisandro

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