sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Descrição da Ilha da Saudade

Ritos de passagem do cinema goiano

Rodrigo Cássio e Pedro Novaes*

Toda seleção de filmes é produto de critérios. A Mostra Cinema Feito em Goiás, em cartaz no Cine UFG, até 10 de setembro, anuncia o critério da sua seleção já em sua proposta: evidenciar os filmes mais relevantes produzidos em Goiás nos últimos anos. Muito pode ser dito sobre a dimensão ampla desse objetivo. Quantos goianos conhecem o cinema que tem sido feito no Estado? O que se pode falar sobre ele a partir do conjunto de filmes exibidos no Cine UFG?

Para essas duas perguntas, a existência de um critério de qualidade é também uma provocação aos que se interessam pelo tema, e talvez se surpreendam com o fato de que Goiás possui bons filmes. Ao mesmo tempo, estes bons filmes da Mostra (e há outros que ficaram de fora), sugerem tanto os potenciais quanto as fraquezas de uma produção detida em um contexto desfavorável. Por um lado, há condições inadequadas de realização das obras. Por outro, há uma deficiente recepção e circulação delas, a tal ponto que a maioria do público goiano sequer toma conhecimento dos filmes mais relevantes.

Por isso, de um ponto de vista da qualidade, é melhor falar sobre o que os filmes da Mostra evitaram. Melhor falar sobre o que eles “não são”, e, com isso, abordar características que têm impedido o cinema de Goiás a crescer e comprometido a sua identidade.

O aspecto que talvez mais se destaca, entre vários, é que os filmes da Mostra Cinema Feito em Goiás não se furtam de discutir temas recorrentes na produção como um todo. Porém, almejam uma singularidade na maneira como realizam essa discussão. Passageiros da Segunda Classe, Mudernage, Recordações de um Presídio de Meninos ou Número Zero investigam a nossa realidade mais próxima, como a presença de crianças de rua em Goiânia ou o fechamento do hospital Adauto Botelho. Diferentes de inúmeros filmes com o foco sobre Goiás, eles são também propostas de linguagem cinematográfica, conscientes de que discursam por meio de imagens.

Do lado da ficção, obras como Descrição da Ilha da Saudade (foto), Ecléticos Corações e Sexo com Objetos Inanimados indicam que o domínio sobre uma técnica de narração é sempre proporcional ao cuidado dos diretores com os aspectos variados da linguagem do cinema, da fotografia à direção dos atores, do plano bem escolhido ao movimento da câmera. Neles, assim como em O Desespero Fotográfico de meu Pai ou O Filme que nunca Existiu (estes mais próximos das vanguardas e das rupturas com a narrativa tradicional do cinema), o cinema se confirma como um “labor” criativo, e, portanto, como um produto do esforço de quem concede ordem às intuições que possui.

Estas obras entendem que a técnica  - fotografia, desenho, captação e edição de som, cenografia, etc. - existe a serviço de uma proposta estética e de uma linguagem. A técnica por si só não sustenta um filme. Do mesmo modo, não se faz bom cinema sem conhecer a história dessa arte, sem pesquisar as suas formas e perseguir a melhor maneira de dominá-las. O que não significa que possuir referências é aprisionar-se a elas, e certa liberdade, nesse sentido, é algo que os filmes em cartaz no Cine UFG possuem em comum. Por exemplo: o mínimo passo que deram para ter como parâmetro estético o cinema, e não a televisão, já os qualificam na nossa conjuntura.

Não são vistos, no Cine UFG, filmes que apenas reproduzem (mal) a linguagem dominante dos meios audiovisuais de hoje. Ficaram de fora as excessivas interferências gráficas de um uso “viciado” nas tecnologias de imagem, os formatos padrões de documentário, oriundos da pasteurização da mídia global e da publicidade institucional, ou as falsas novidades dos experimentos que ainda não amadureceram a sua particular expressividade.

Raízes de nossos dilemas

Se o domínio da linguagem e a inovação estética não avançaram no mesmo passo do aumento do número de produções nesta década, as raízes desses problemas parecem residir em quatro fatores: 1) na pracariedade da capacitação formal de nossos realizadores e profissionais,  2) na debilidade dos mecanismos de fomento existentes, 3) num mercado local de produção publicitária e televisiva que não investe em novos profissionais e 4) na desmobilização e despolitização dos realizadores.

Infelizmente, a formação da maioria dos realizadores goianos ainda é predominantemente informal. No ensino formal, há apenas um curso de graduação em audiovisual - na UEG, que ainda se ressente da falta de maior estrutura - e uma especialização em faculdade privada. Não há nenhum curso de pós-graduação senso estrito com foco específico no cinema.

Tal quadro não permite o surgimento de uma dinâmica acadêmica de pesquisa, debate e realização, algo essencial para a evolução estética dos filmes. Cabe lembrar que, em tempos recentes, em todos os lugares onde houve movimentos de inovação audiovisual, escolas de cinema sempre foram parte crucial dessa dinâmica

Evidentemente, a maior parte da produção nesta década foi apoiada por dinheiro público - em Goiás, principalmente através da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Goiânia, do edital anual do Festcine e, marginalmente, da Lei Goyazes, de dois editais de roteiros realizados nesta década pela Agepel e das leis federais do Audiovisual e Rouanet.

Apesar disso, qualquer análise mais detida demonstra fatos inequívocos: os valores investidos são absurdamente baixos para a complexidade da produção em cinema e, tanto na Lei Municipal, quanto na estadual, a despeito destes custos, o audiovisual é das atividades menos prestigiadas proporcionalmente. Uma análise dos valores investidos pela Lei Municipal, por exemplo, entre 2001 e 2008 demonstra um largo descompasso entre o aumento absoluto dos valores totais aplicados pela Lei no fomento à cultura e os valores destinados ao audiovisual. Enquanto o montante da renúncia fiscal feita pela Prefeitura cresceu em cerca de 500% no período, os valores destinados ao audiovisual subiram apenas 160%. Além disso, apesar de seus altos custos, dada a complexidade da atividade, o audiovisual segue como o segmento menos prestigiado pela Lei, recebendo apenas 10% de seus recursos.

Assim, a despeito de sua expressiva produção cultural, Goiás ainda se encontra muito atrasado em relação às demais unidades da Federação em termos de mecanismos de fomento à cultura. A não regulamentação do Fundo Estadual e do Fundo Municipal de Cultura de Goiânia são a face mais evidente desse atraso.

Por fim, a despolitização e desmobilização da classe audiovisual também devem ser objeto da nossa reflexão. Somos reféns das nossas diferenças e de vaidades desnecessárias. Acabamos imobilizados por discussões vazias e brigas de poder que relegam as discussões estéticas para último plano. Sem mobilização, as decisões políticas em relação ao cinema continuam tomadas à deriva da participação de quem mais deveria se interessar por elas – os realizadores e o público de cinema em Goiás.

Rodrigo Cássio, jornalista e filósofo, e Pedro Novaes, diretor cinematográfico, são curadores da Mostra Cinema Feito em Goiás. (texto publicado no jornal O Popular em set. 2010 a propósito da mostra "Cinema feito em Goiás" - promoção do Cine-UFG).

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