quinta-feira, 14 de outubro de 2010

"Eu estava lá" ou O amor pelo Cinema.

EU ESTAVA LÁ
        
                                                                                        Luís Araujo Pereira
           
            Há algum tempo, quando abri um livro que repousava num lugar obscuro da estante, um dicionário de verbos franceses que reunia quietude e solenidade, o qual não consultava havia muito tempo, encontrei  por acaso entre as suas páginas um panfleto.
            Ao desdobrá-lo, os seus vincos amarelados expuseram uma folha — olhe só que anacronismo! — impressa em mimeógrafo...
            Sim, agora me dou conta e recupero na memória o cenário: eu estava lá, na Cinemateca Francesa, quando recebi esse panfleto e, depois de lê-lo emocionado, guardei-o com reverência. Como esquecer o fato? Como esquecer de um lugar tão importante e tão simbólico? Como, além do Louvre, encontrar as imagens que procurava, eu, que estudava o grafismo narrativo das histórias em quadrinhos? Naqueles tempos de derivações, a cinemateca era outra casa que eu tinha em Paris...
            Eu o recebi em janeiro de 1977.
            Esse panfleto anunciava a morte de Henri Langlois ocorrida no dia 14 de janeiro e era assinado pelos funcionários da casa.
            Relendo-o depois de tanto tempo, penso nos lamentos que essa perda provocou no coração de todos nós, os cinéfilos espalhados pelo mundo. Junto com Henri Langlois desapareceu também uma vocação desinteressada pelo cinema e, não é demais dizê-lo, um cultor exigente dessa arte. Porque ele é tão importante, Truffaut e Bertolucci renderam-lhe tributo em seus filmes.
            Não sei qual é o interesse que este texto pode despertar hoje. Em todo o caso, eu o traduzi, supondo que talvez exista um leitor interessado, que só pode ser certamente outro cinéfilo... Se isso não for suficiente que seja então pelo fato de tratar-se de uma bela peça retórica sobre a homenagem. Para quem conhece a história do cinema, sabe que Henri Langlois não foi apenas um ativista cultural refinado, mas principalmente um teórico que atribuía ao cinema um valor que parece cada vez mais esquecido — o cinema como verdade e esclarecimento, poesia e combate.
            A tradução segue abaixo, mais livre que literal.



            A MORTE DE HENRI LANGLOIS

            “Se, ao longo dos anos, a matilha formada pelos seus inimigos não conseguiu destruí-lo, o Destino acabou agora por fazê-lo.  
            “A grande voz de Henri Langlois calou-se para sempre. 
            ‘A Cinemateca Francesa está de luto; com ela, compartilhando a sua dor, o cinema do mundo inteiro. Henri Langlois deixa uma obra imensa e singular, pois ela é, antes de tudo, a prova contra o esquecimento, a passagem do tempo, os poderosos, o dinheiro, o lucro, o que em poucas palavras nos conduz à ideia de que o cinema é feito de obras — e não de mercadorias. Um trabalho sem fim e sobre o peso do qual, no final, ele desabou — uma abnegação cujo modo de exercê-la não tinha limites e um desinteresse absoluto dão a esse grande combatente a imagem de um herói morto na batalha, uma batalha interminável e multiforme contra um inimigo todos os dias renovado.
            “Henri Langlois morreu aos 62 anos, enquanto a instituição que ele criou tem perto de quarenta. A Cinemateca Francesa é a sua obra, uma obra tão original quanto a mais original de todas as criações. Por causa de todas as inquietações que são vistas nos filmes, o cinema causou-lhe uma transformação radical.
            “Esse especialista superior, animado por uma intuição sem igual, essa testemunha encarniçada, esse pesquisador incansável , afirmou um dia:
            “’Entre todos os fatos, mesmo sob o tacão da negócios, o cinema é o meio de expressão privilegiado do nosso tempo.’”
            “Por ser obstinado, acreditava que todos os filmes eram livres e iguais, que não havia filme descartável ou desprezível, que todos deviam ser salvos, preservados, guardados — e essa ação deveria, portanto, significar um combate permanente às regras da indústria, da bilheteria e do descarte.
            “Destruir um filme por qualquer motivo sempre lhe parecera — bem antes de sua suspeita tornar-se uma evidência universal — um crime contra a humanidade. O seu trabalho infatigável, a sua paciência, a sua arte de jogar com as contradições fizeram com que todos os autores e todos os espectadores de cinema passem a dever-lhe alguma coisa a partir de agora, se não isso, pelo menos o essencial: que o cinema não seja mais uma mercadoria mas uma arte, que os filmes não sejam mais produtos mas obras de arte.
            “Esse trabalho imenso não termina certamente com ele.
            “Henri Langlois reuniu à sua volta um grupo de amigos que tinham o mesmo fervor pelo cinema. Ele foi brilhante no momento decisivo, e isso fez com que as gerações seguintes se espelhassem em sua atuação. Quando se pensava que ele estava vencido — tudo o que os poderosos desejavam —, ele se reerguia.
            “A despeito de todos os apoios favoráveis, reconhecia que estava sempre ameaçado e sabia ainda que a calúnia e a desconfiança, a zombaria e a piedade hipócrita procuravam todos os dias assassiná-lo. E a sua morte seria seguramente um assassinato se o combate que ele conduziu, se a obra que ele começou, e que ele deixa com o fim de sua vida antes de concluí-la, teriam de ser abandonados no meio do deserto.
            “Henri Langlois, do jeito que ele sempre foi, não é mais o nosso companheiro, mas tornou-se um estandarte. Uma outra vida começa para ele. A Cinemateca Francesa, o Museu do Cinema — e brevemente — a Fundação Henri Langlois conduzirão até o último fôlego o seu projeto, que significa também uma paixão.
            “O amor ao cinema, sim, é também um amor compartilhado.”

                                                                                 

                                                                                                      A Cinemateca Francesa
                                                                                                    

8 Comentários

Lisandro Nogueira disse...

Luiz,

seu texto é muito bonito: prenhe de emoção e memória. O que seria do cinema sem as cinematecas? O que seria da grande cinemateca francesa sem Henri?

Seu texto anima a cinefilia. Recordo-me do Cineclube "Antonio das Mortes". Lembr0-me quando nos conhecemos em 1980, você, meu professor. Depois meu amigo, vendo filmes em 1983 na sala da CEF na Av. Goiás.

Bons tempos!! Alegria e improvisação. Mas não sou apegado ao passado: somente como memória para reavivar o presente.

Henri plantou uma semente para todos nós. Não seria possivel ver hoje, em película, DVD ou qualquer outro suporte o belo "Acossado" e tantos outros bons filmes.

Seun texto é bonito e afetivo. Só grandes amigos escrevem assim e oferecem um texto tão generoso.

O blog agradece, blog q é nosso, dos amigos, alunos e todos aqueles que amam o cinema e a cultura/arte.

Lisandro

Anônimo disse...

Lisandro,

Obrigado pelo comentário e por abrigar o texto, um produto do acaso.
O que são os acasos?
O acaso me conduziu naquela dia à cinmeateca.
O acaso foi o fato de eu ter recebido o manifesto, lido o seu conteúdo e, em seguida, guardá-lo para reencontrá-lo, por acaso, tantos anos depois.
O que é o acaso, afinal, para Hitchcock senão o começo do suspense em muitos dos seus filmes?
Parece que o acaso pode ter feito também com que você e eu gostemos tanto de cinema...
Que este feliz acaso - o abrigo do meu texto no seu blog - provoque uma boa discussão sobre o valor das cinematecas.

Luís

Anônimo disse...

Com a discrição que o clima que encontro aqui recomenda, peço licença pra registrar que esse texto da Cinemateca Francesa comoveu-me profundamente.
Herondes

Anônimo disse...

Faz tempo que penso que o Luís deveria ser curador de uma casa de cinema em Goiânia. Já lhe disse isso, inclusive. Seu texto me faz lembrar, inevitavelmente, da razão dessa minha idéia fixa: tal curadoria não é trabalho para burocratas, mas para alguém capaz de pensar nessas dobras de memória que se geram em tais espaços.
Alexandre

Anônimo disse...

Alexandre,
Nunca ambicionei cargos, nunca quis dar ordens em posição de chefia, nunca gostei de boleros, mas amo o tango e Barthes.
Você sabe que sou esquisito.
Além disso, você sabe do meu eterno dégout pela política - cultural, qualquer que seja, pois envolve relações com seres mais esquisitos do que eu.
Eu não sou desse métier.
Sempre apreciei a sua sugestão mais como vaidade, mas sempre lhe disse também que há pessoas melhores do que eu para realizar tal tarefa.
Você tem a mesma generosidade do Lisandro.
Ambos acham que eu presto para alguma coisa.
Na minha maravilhosa vida atual, a única coisa que quero é simples: escrever poemas, contos e crônicas.
Numa coisa porém sempre concordamos: é preciso pensar que só a cinemateca, por ser o local da formação, descobre os cineastas: não se faz cinema sem ver filmes.
Obrigado, assim mesmo.
Luís

Rz disse...

Oi Ló!
Li e gostei. Gostei da tradução meu sempre "aluno/professor"!
Eu tomém tenho boas lembranças daquela vetusta mas deveras estimulante sala!
Parece que deram uma reformada, sem dúvida necessária, mas que sei lá, pelo que andam dizendo - Geds, sobretudo - perdeu um pouco a "alma".
O tempo passa, as coisas mudam e, temos sim,direito de desejar que o bom das coisas boas não se perca.
Nem sei ainda como o Ramsés resiste!
Fora isso, lembre-se que eu estou te esperando na ilha de São João! Lá o espetáculo é a céu aberto!
Bjks, Rz

Anônimo disse...

Oi,Rz

Merci, oh Belém do Pará!
Je vous salue, Rz, ma chère!
A cinemateca continua em outro lugar, eterna e majestosa, com o seu acervo de milhares de filmes.
Vê quem exerga, perto ou longe, segundo o grau que abona a visão.
Uma ilha, é claro, pode ser longe ou perto.
Uma ilha com o nome São João, uma ilha antiga sem dúvida evoca um santo.
Parece que essa lha, se tanto, tem um altar.
Je vous salue, Rz.
Luís

Anônimo disse...

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