domingo, 5 de dezembro de 2010

Lisandro Nogueira - entrevista p/ jornal Arquidiocese de Goiânia


ENTREVISTA

LISANDRO NOGUEIRA

'O Brasil é mais profundo
que Tropa de Elite'


KARINA SANTOS/ELDER DIAS

Professor da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás (UFG), Lisandro Nogueira é um crítico de cinema muito atuante, conhecido e respeitado do Estado, o que ficou ainda mais evidenciado com suas participações, às sextas-feiras, no Jornal Anhanguera Edição do Almoço, da TV Anhanguera. Desde 1988 é professor de cinema na UFG, com mestrado na USP e doutorado na PUC-SP. Em entrevista ao Brasil Central, ele fala muito do cinema brasileiro – tacha Tropa de Elite e Cidade de Deus de filmes “oportunistas” –, elogia e critica as telenovelas e coloca o Oscar como uma premiação menor do que festivais europeus, na questão estética.

Como o cinema entrou em sua vida?
Vendo filmes de faroeste. Depois, com 18 anos, descobri o cinema brasileiro e o Cinema Novo de Glauber Rocha. Em seguida, vieram os clássicos do cinema italiano, francês, americano. O Cineclube Antônio das Mortes, criado em 1977, foi fundamental na minha formação. Devo quase tudo aos vários debates, à produção e à exibição de filmes ali. Por isso, trabalho até hoje com formação de jovens para o mundo das imagens.

O que você definiria, na linha cronológica do cinema brasileiro, como seu auge e o fundo do poço?
O auge do cinema brasileiro é a fase do Cinema Novo – o cinema mais consistente de toda a história do cinema nacional. Isto porque, trabalhou com acuidade, forma e conteúdo. Os filmes atuais de Fernando Meirelles, José Padilha e Walter Salles ainda não chegaram ao nível dos filmes de Glauber Rocha (Terra em Transe e Deus e o Diabo na Terra do Sol). Esse dois filmes conseguiram traduzir o Brasil com uma forma estética atilada. O momento crítico do cinema brasileiro foi após a posse de (Fernando) Collor de Mello: quase foi ao fundo do poço.

Nas idas e vindas do cinema nacional, o senhor acredita que hoje ele esteja em um momento de evolução ou de retrocesso? 
O cinema brasileiro oscila fortemente. Em alguns momentos realiza obras geniais e reconhecidas: caso do Cinema Novo e, hoje, de Salles, Meirelles e Padilha. É um cinema, no geral, consistente, mas pouco visto. Os brasileiros quase não o conhecem. Entretanto, é ele que representa o Brasil no mundo das ideias, entre os grandes diretores e em todo o universo cinematográfico. Na hora de aferir  qualidade é o cinema brasileiro, e não as telenovelas, que é reconhecido. Nesse momento, como em 2003, vive um bom momento em relação à bilheteria. Mas pode passar e viver momentos complicados.

Os filmes brasileiros vivem, pelo menos parte deles, da sombra da linguagem da TV aberta? Ou já se criou uma linguagem própria? 
O cinema brasileiro e sua linguagem são basicamente distintos da linguagem da TV – em boa parte de sua história. Hoje, entretanto, existe um cinema vinculado ao padrão televisivo. Isso é danoso. A linguagem de TV ousa pouco e é muito padronizada. Se queremos um cinema brasileiro forte, não podemos ficar imitando a TV. 

Quais são as caraterísticas de um bom crítico de cinema? O que é preciso para fazer uma boa crítica de um filme? O gosto pessoal do crítico pode atrapalhar essa tarefa?
A crítica de cinema deve pautar-se pelo distanciamento da obra ao mesmo tempo que não pode e não deve prescindir de certo envolvimento emocional. É fundamental conhecer bem a História do Cinema, os diálogos do cinema com outras áreas do conhecimento e ver muitos filmes. A boa crítica de cinema procura sempre trazer informações, comentários e interpretações. O público sempre espera que o crítico dê sua opinião, sua interpretação.

Até que ponto o cinema influencia positiva e negativamente na vida das pessoas? Um filme pode mudar a história de uma vida?
O cinema tem uma força extraordinária. Ele mexe muito com a emoção das pessoas. Ele pode ser usado para angariar simpatia para eventos e manifestações fortes e estúpidas (como o nazismo); mas pode contribuir para atitudes afirmativas e cívicas. Mas a maior contribuição é para o pensamento, o espírito. Gilles Deleuze afirma que o cinema é uma forma de pensamento, uma filosofia. Sendo assim, seu poder é incomensurável.

Filmes como Tropa de Elite e Cidade de Deus são motivo para o cinema brasileiro se orgulhar?
Não gosto da imagem que esses filmes passam do Brasil para o exterior. Com diferenças aqui e ali, esses dois filmes são oportunistas, pois mostram de forma superficial os nossos problemas. Eles, os problemas, são complexos para serem tratados com narrativas que angariam rapidamente a adesão do público, dos seus sentimentos, com superficialidade. O Brasil é maior e mais profundo que esses filmes.

Em termos da produção mundial, para onde corre o cinema?
O cinema tradicional que conhecemos (o espectador e a tela grande) vai conviver com as novas narrativas híbridas, com as novas possibilidades de interação. Mas a criação de histórias com imagens em movimento continuará intacta, ou seja, o que vai mudar é o suporte (cinema, internet etc), a possibilidade de interação, a hibridização e  narrativas que serão criadas para várias mídias. O melodrama (narrativa encontrada em quase todos os gêneros) continuará firme em todas as mídias. Há uma exaltação das novas mídias. Mas continuará prevalecendo a boa história contada, o estilo criativo e a ousadia estética. Federico Fellini e Glauber Rocha continuam mais atuais que nunca. Ao mesmo tempo, vão surgir criadores geniais que vão utilizar as novas mídias para criações originais. Nossa necessidade de mitos (narrativas) continuará plena.

O que faz, de fato, a maioria das pessoas ser atraída por um determinado tipo de filme (hollywoodiano, por exemplo) e nem tanto por outro (os considerados "de arte")?
Os filmes oriundos da narrativa clássica, com base no melodrama, são próximos das velhas narrativas mitológicas nas quais o humano é confrontado com problemas morais, políticos e culturais. O problema: essas narrativas no cinema, ao longo do século, em virtude da massificação se tornaram extremamente superficiais. A ênfase recai mais sobre as imagens e as possibilidades de manipulação oferecidas pelas novas tecnologias. Esse cinema gera pouco pensamento e mais emoção. Daí seu apelo sentimentalista. Afirmo sempre para meus alunos: é possível conviver com esse processo de massificação mas, ao mesmo tempo, procurar narrativas mais sofisticadas que falam mais ao espírito.

Como se explica o fenômeno do sucesso das novelas no Brasil? 
É uma manifestação popular, narrativas de longo alcance que remontam o século 17... As telenovelas brasileiras são bem feitas tecnicamente, possuem bons atores e são do agrado da maioria da população: são fáceis de ver, isto é, o espectador logo decodifica as mensagens e sente-se completamente envolvido e gratificado. Elas têm como base o gênero melodramático: bons versus maus, virtude versus vício. Reclamam, por outro lado, uma qualidade estética.

As novelas merecem esse estigma de estar a serviço da alienação que lhes é imposto?
De certa forma, sim. Por tratarem tudo na superficialidade com o objetivo da comunicação rápida, acabam reforçando preconceitos, suavizando relações sociais que são tensas e contribuindo decisivamente para a não problematização das questões da vida. Por outro lado, num país com enormes problemas de segurança e renda, a TV e as novelas criam as possibilidades de novas sociabilidades, ou seja, é mais barato e seguro ficar em casa “participando” de narrativas familiares já bastantes conhecidas. .

O senhor tem um espaço para falar sobre os filmes que chegam ao cinema a um público heterogêneo, no telejornal de maior audiência do Estado. O senhor recebe uma interação a partir desse canal?
O professor não pode ficar preso nos campi das universidades. Ele precisa interagir com a sociedade. Meu trabalho como crítico de cinema na TV Anhanguera está dentro de um projeto histórico no sentido de contribuir para a divulgação e disseminação da linguagem e história do cinema em Goiânia. Tenho uma grande interação com o público. Procuro mostrar que existem filmes e filmes, histórias e histórias. É um trabalho estimulante que me permite estar perto dos filmes de grande público. Desta forma, consigo acompanhar a cinematografia mais abrangente. Um professor de cinema não pode se dar ao luxo de ver somente "filmes de arte". Tenho a obrigação de acompanhar e dialogar com o cinema de grande público. Afinal, trabalho com formação de público e jovens.

Como o Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica) tem ajudado a sétima arte em Goiás? Ele influi nisso?
O Fica é muito importante. Ele contribui decisivamente para a consolidação de uma cena cinematográfica em Goiás. É conhecido no mundo inteiro. Mas ainda falta deixar de ser somente um evento no mês de junho. Precisa durar o ano inteiro para formar cineastas e público; realizar ações que envolvam o meio ambiente e o cinema visando a formação das pessoas para o convívio e soluções para os graves problemas ambientais.

Até hoje o cinema brasileiro não levou um Oscar, apesar de colecionar outros importantes prêmios internacionais. O que falta para o Brasil levar uma estatueta?
O Oscar é uma festa da indústria do cinema. O que vale aí para ganhar prêmios é o lobby, o marketing. O Oscar é importante para dar visibilidade ao filme. Seria bom o Brasil ganhar prêmio para ajudar na divulgação. Esteticamente, o Oscar tem pouca importância. Os mais importantes são Cannes, Veneza e Berlim.


FRASES-DESTAQUE
“O cinema tem uma força extraordinária. Mexe muito com a emoção das pessoas. Ele pode ser usado para angariar simpatia para manifestações estúpidas (como o nazismo), mas pode contribuir para atitudes afirmativas e cívicas.”


“Por tratarem tudo na superficialidade, com o objetivo da comunicação rápida, (as telenovelas) acabam reforçando preconceitos, suavizando relações sociais que são tensas e contribuindo para a não problematização das questões da vida.”


(PERFIL)
LISANDRO NOGUEIRA, professor e crítico de cinema
Hobby: Cinema
Time de futebol: “
Vila Nova. Gosto mais dele do que da seleção brasileira.”
Prato predileto:
Arroz com carne moída e batatas
Cantor(a) favorito(a):
Caetano Veloso
Para ouvir no CD do carro:
"Chambre Ave Vue", com Henri Salvador
Filme inesquecível:
"Terra em Transe", de Glauber Rocha
Para assistir sozinho:
"Viagem a Tóquio", de Ozu
Para assistir a dois: "Duas Inglesas e o Amor", de François Truffaut.
Para assistir sempre que puder:
"Amor à Flor da Pele", de Wong Kar-Wai
Favor nunca assistir: "Carlota Joaquina", de Carla Camurati
Cineasta favorito:
Glauber Rocha, Woody Allen e Wim Wenders
Melhor ator: Paulo Autran
Melhor atriz:
Juliette Binoche
Melhor novela:
"O Dono do Mundo", de Gilberto Braga
Melhor autor de novela:
Gilberto Braga
Hollywood: “
John Ford, sempre”
Cinema nacional:
Glauber Rocha

O melhor de ir ao cinema: ver um filme surpreendente e depois tomar um café expresso
O mais chato de ir ao cinema: quando as pessoas fazem barulho na sala de cinema
Lisandro Nogueira por Lisandro Nogueira: tímido, por isso extrovertido.

fonte "Jornal Brasil Central (Arquidiocese de Goiânia), n. 516, novembro de 2010"

8 Comentários

Lola disse...

Ótima entrevista... E super concordo demais da conta que o Brasil é muito mais do que mostra Tropa de Elite... Além disso, o tom paternalista desse filme me deixou com muito raiva. Com menos de meia hora, eu queria sair da sala... =D

Anônimo disse...

Lisandro, muito boa a sua entrevista. Embora eu discorde de várias observações ali expostas, isso não vem ao caso. Acho maravilhoso quando o intelectual pode abordar uma questão sob tão variados aspectos, o que é também um mérito do entrevistador. Só vou discutir uma frase sua: "O Brasil é maior e mais profundo que esses filmes [de Padilha e Meirelles]". Cinema e realidade social são dois níveis de consideração que não precisam estar em correspondência direta. Você poderia reformular a mesma frase para cada um dos maiores cineastas de todos os tempos, e ela sempre seria "verdadeira", o que, no entanto, não prova nada. Observe: "Os EUA são maiores e mais profundos que os filmes de John Ford", "A França é maior e mais profunda que os filmes de Godard", "O Japão é maior e mais profundo que os filmes de Kurosawa", "A Espanha é maior e mais profunda que os filmes de Buñuel", "A Rússia é maior e mais profunda que os filmes de Eisenstein"... Não é verdade? (José Teixeira Neto)

Anônimo disse...

Otima entrevista!!!
Polly

Thomas Silva disse...

Sensacional entrevista!!
Muito boa mesmo.

Lisandro Nogueira disse...

Caro José Teixeira, talvez ficasse melhor "O Brasil é mais complexo que Tropa de Elite". O filme é eficaz e superficial. O MP de Goiás vai debatê-lo dia 20 dez, 16h. Um abraço, Lisandro

Elaine disse...

Lisandron você é timido?. Tá lá no final da entrevista. Não acredito.

Diego Michel disse...

Estou sempre acompanhando seus comentários sobre esta Fase do Cinema Nacional, uma fase nada agradável, extremamente oportunista, dissemina uma imagem Falaciosa sobre o Cinema Nacional e os conflitos sociais.

Lisandro, você pode passar mais informações sobre esse debate que o MP irá realizar.

Obrigado.

Tales Augusto disse...

Vou procurar alguns dos filmes citados na entrevista pra assistir nas férias. Comprei Duas Inglesas e o Amor (mas o nome Truffaut deu uma bela ajuda, gosto muito de Os Incompreendidos e por causa dele comecei a ler Balzac).

Só não concordei muito com o que disse sobre Tropa de Elite e Cidade de Deus, não acho que pra um filme ser bacana precise ter uma temática muito abrangente. "O Brasil é maior e mais profundo que esses filmes", tudo bem, mas... e aí...

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