Folha - E como foi a recepção crítica no exterior? Chico Buarque - Foi muito diferente em países onde me conheciam e em outros onde eu era absolutamente inédito. Na França eles souberam respeitar minha opção literária. Mas isso depende também de como é conduzido o lançamento, do nível dos jornalistas que destacam para a entrevista etc. Na Espanha, por exemplo, de vez em quando eu me via falando com rádios para as quais o foco era o compositor. As perguntas que faziam eram ao autor de músicas. Já na Noruega não tinham a mínima idéia, assim como na Holanda, onde ninguém me conhece como músico. A dificuldade nos países onde a música era mais conhecida é exatamente o fato de que eles recusam um pouco a possibilidade de um escritor brasileiro ser, de certa forma, inovador - ao contrário do que acontece com a música. Eles aceitam a originalidade da música popular brasileira tranqüilamente, mas a literatura eles vêem com mais surpresa. Imaginam o Brasil como um país ainda em grau de civilização inferior ao deles, o que favorece a criação musical. Era difícil explicar por que é que eu estava largando um ofício, que para eles era tão mais viável, tão mais apropriado, por um outro que os europeus dão banho nos brasileiros. Mas o livro foi muito bem aceito de uma forma geral. Houve críticas muito boas. Folha - Você acha que em relação ao Brasil esse problema poderia ser colocado de que forma? Você acha que foi diferente? Chico Buarque - Na verdade eu estava fora, não quis nem estar aqui na época do lançamento. Eu sentia que havia uma desconfiança brutal, mas brutal, antes de o livro sair. O livro estava pronto para ser muito mal recebido. Isso eu tenho certeza. As pequenas notinhas, as ironias que me chegavam... Folha - Mas, você ficou de modo geral satisfeito? Chico Buarque - Fiquei. De modo geral o livro foi muito bem recebido. Houve críticas negativas, mas houve um respeito por essa minha opção. Afinal - não posso ser modesto - foi uma opção corajosa. Não é muito fácil você abandonar o que sabe fazer durante tanto tempo por uma aventura. Folha - Algumas coisas que você não estava conseguindo dizer através da música foram transmitidas através do livro. Houve essa questão? Ainda que intuitivamente você se voltou para a literatura? Chico Buarque - Não, isso não é intuitivo. Eu tenho bastante claro que a música me conduz para algumas coisas e me limita. Eu sempre disse que conhecia os meus limites literários diante da música. Eu sabia que para mim era insuficiente aquilo como literatura. As coisas que eu digo no livro, não tenho música para dizer. Eu também não estabeleço terrenos hierarquicamente superiores. Através da música digo coisas que eu não conseguiria dizer sem ela. Em relação à música eu sou um autor muito mais passivo do que na literatura. É evidente que eu sou um músico intuitivo e não sou um escritor intuitivo. Eu tenho noção perfeita do que estou escrevendo. Folha - A grande imprensa fez uma leitura genérica do livro. Certos detalhes passaram despercebidos, como o núcleo da amizade, como a questão da figura do delegado, da relação familiar, com o pai sempre ausente... Chico Buarque - Só que a história para mim não tem muita importância. A história do amigo ser homossexual não é clara porque eu não quero que seja, porque não é importante que seja. Mas uma crítica que se publica num jornal qualquer precisa de gancho e os ganchos são os mais pobres possíveis. Eu reconheço que é muito difícil fazer uma resenha desse livro. Onde é que está? Por onde vai pegar? Esses problemas eu enfrentei muito nas traduções. O tradutor não percebia exatamente o que era e achava que estava mal contado ou que ele não havia entendido direito por problemas de compreensão do português. Folha - Como você chegou ao título "Estorvo"? Chico Buarque - O título surgiu já com o livro quase pronto. Ele surgiu no texto. Não tinha título. Tirei de um trecho, em que o sujeito caminhava pela multidão, que era um estorvo. Troquei a palavra no texto por obstáculo ou empecilho e fiz o título. Houve até uma certa resistência no começo, pelo título ser estranho, um pouco repulsivo. Folha - Como compositor, você parece ocupar lugares e ângulos diferentes. Por exemplo, em Samba de Orly (70), dá uma visão de quem está fora do país e já em "Meu Caro Amigo" (1976) dá uma visão de quem está de dentro. O mesmo ocorre com "Pivete" (78), retrato do próprio, e em "O Meu Guri" (81), sob o ponto de vista da mãe. Usando uma metáfora musical, sua música sempre tem lado um e lado dois. A visão de Chico como artista político reduz bastante a apreensão destas outras facetas. Ou seja, o fato de você dar voz a outros personagens, paradoxalmente, acabou restringindo a sua individualização artística. Chico Buarque - Essa tendência de enxergar sempre através do político de certa forma cristalizou uma idéia que não me satisfaz, absolutamente. Muitas vezes isso aconteceu por que eu queria. Mas eu canto uma música no show que fala disso e que agora não tem mais nada a ver com o momento em que ela foi composta. Me perguntaram por que essa música política no meio do show. Mas ela é na verdade um pouco a negação disso tudo. A música se chama "Pelas Tabelas". É um sujeito procurando uma mulher, apaixonado, no meio da manifestação pelas diretas. É essa confusão do individual com o coletivo e apontando muito para o individual naquele momento coletivo. Mas a leitura predominante é a política, que é uma leitura viciada. "Pelas Tabelas" é um samba que eu gosto de cantar e que estou cantando nesse show, porque ele também tem um pouco essa confusão do "Estorvo", essa barafunda mental. Folha - Você está mais em paz com isso hoje? Chico Buarque - Estou mais em paz com isso. A partir do momento que eu escrevi o livro acho que já estava assumindo uma opção atrevida. O fato de escrever o livro já era uma recusa em atender a expectativas. Folha - A sensação que eu tenho é que você está mais leve. Chico Buarque - Parcialmente, porque a cobrança ainda existe. O artista está sempre devendo alguma coisa, algum tipo de explicação. A gente tem que encontrar a sabedoria de ficar com várias dívidas e não pagar o que é cobrado. Eu me sinto muito mais livre em relação a isso, e não é de hoje, é dos anos 80 para cá. Folha - Eu queria que você pontuasse alguns momentos de virada de sua obra. Chico Buarque - Eu considero "Tem Mais Samba" (64) como minha primeira música, o marco zero da minha obra. Meu disco "Construção" (71) também é um momento importante. O disco anterior ao "Construção" é muito confuso. Há atenuantes para isso: eu gravei a voz na Itália, os arranjos foram feitos aqui, mas a própria criação das músicas é confusa, você percebe que eu estava um pouco perdido. Já não queria fazer o que estava fazendo e estava sem encontrar uma linguagem. "Construção" foi um disco de chegada ao Brasil e de reencontro com uma linguagem de renovação. Eu não sei te fazer essa cronologia, datar exatamente, através das músicas, uma evolução clara. Mas entre a primeira música e "Construção" houve todo um momento de reaprendizagem, que foram os anos de 67 e 68, quando eu tomei contato com Tom Jobim, contato real com a música, que para mim era muito de ouvido. Eu comecei a fazer música por causa da bossa-nova, uma coisa muito à distância, eu morava em São Paulo, não sabia nada de música, era absolutamente intuitivo. As minhas primeiras parcerias com o Tom e o meu contato com ele me levaram para esse caminho da música mais consciente, menos primitiva. Hoje eu sou um músico mais preparado evidentemente do que há 30 anos, quando escrevi "Tem Mais Samba", e isso eu tenho a impressão que se pode perceber. Folha - Trabalhar sob pressão pode ser produtivo? Chico Buarque - Trabalho mais por necessidade do que por desejo. Eu não faço um disco quando quero, faço quando preciso e não sei exatamente o que é que dita essa necessidade. Com certeza não é uma pressão estranha, de fora, é uma pressão que eu mesmo me coloco e não sei qual é a natureza dela. Mas a verdade é que isso vale para todos os meus discos. Vale para tudo, porque na realidade você nunca acha que está pronto. Tem uma hora que você coloca um ponto final para não ficar maluco. Mas quando passa um certo tempo você olha para trás e pergunta: "Por que eu não fiz isso? Por que não fiz aquilo?" Sempre dá um certo arrependimento. Outro dia eu li que o pintor Pierre Bonnard ia com seus pincéis escondidos para o museu onde estavam as obras dele expostas. Quando o vigia não estava olhando ele dava uma pincelada e corrigia um trabalho de dez anos atrás. Eu me identifico perfeitamente com isso. Folha - Bom, eu queria que você comentasse "Piano na Mangueira", que está em "Paratodos", e falasse de sua parceria com Tom Jobim. Penso que "Eu te Amo" e "Anos Dourados" são verdadeiras obras-primas da canção popular brasileira e um casamento perfeito entre letra e música. Você não acha que falta uma crítica mais atenta, capaz de ressaltar a importância destas músicas? Chico Buarque - O que eu digo, já disse e repito é que há muito pouca crítica de música. Há muita crítica de letra. É muito difícil alguém que compreenda a parte musical mesmo. Então é dificil encontrar quem saiba escrever sobre Tom Jobim. Nem compensa, é claro. Você não vai publicar uma partitura num jornal, publica uma letra, porque qualquer um pode julgar aquilo. Para mim isso é frustrante, porque eu vejo a letra tão dependente da música e tão entranhada na melodia, meu trabalho é todo esse de fazer a coisa ser uma coisa só, que, geralmente, a letra estampada em jornal me choca um pouco. É quase uma estampa obscena. Mas voltando ao Tom, ele é o meu maestro soberano. Na verdade, foi meu primeiro parceiro. Eu tinha feito uma música com o Toquinho, no comecinho de 65. Eu nem sabia fazer letra, entendeu? Eu demorei um pouquinho, fui aprendendo a fazer. Foi o Vinícius que me aproximou mais do Tom, que deu uma força para essa parceria. Era difícil fazer letra para o Tom. Ele já era meu mestre. E é um excelente letrista. Geralmente, quando ele me mostra uma música, eu digo: "Faz você, faz você." Mas, às vezes, ele me convoca mesmo. Foi o caso desse "Piano na Mangueira". Folha - "Paratodos" tem uma marca que é a "volta ao samba", a volta à estrada da música, que vai sendo reforçada numa sequência de canções: "Paratodos", "Choro Bandido", "Tempo do Artista" e o "De volta ao samba", que completa a idéia. Chico Buarque - É. A quarta foi para esgotar mesmo o assunto, até correndo o risco de ser redundante. Ela entrou no finzinho, no último fim de semana de gravação. É engraçado, eu já tinha material suficiente para um disco, 11 faixas já era bom, mas aí eu falei: tem mais uma, segura que eu tenho um samba novo, um samba que vai completar uma idéia que para mim é importante. Folha - O disco tem uma cara, inicialmente, mais densa, que aponta para um sentido "sério". Mas a partir de De volta ao samba, entra em outro registro, há mudanças de tom, há brincadeira e humor, como em "Biscate", por exemplo. Chico Buarque - "Biscate" é uma brincadeira com as palavras, é uma brincadeira com a harmonia. A harmonia do "Biscate" é inusitada, está quebrada. Aliás, eu acho que o próprio "Paratodos" tem uma certa leveza. Tem alguma coisa de épico, mas é uma música leve. Mas o humor está mesmo presente. A própria "Foto da Capa" tem humor. Folha - Pensando na figura feminina, o que você acha que mudou desde o primeiro Chico para cá? Você é uma pessoa apaixonada? Chico Buarque - Eu sou uma pessoa muito afetiva, uma pessoa que age por afeto. Eu sou o homem cordial. Eu sou um homem que age por impulso. Esse meu lado afetivo está talvez na música, que sofre esses arroubos afetivos. Eu faço uma distinção bastante clara: na literatura sou um cidadão sem afetos. O fato de estar solitário escrevendo um livro que vai ser apresentado em público e que vai ser lido individualmente, isso me despe um pouco desse sujeito atirado e algo ingênuo. Já a música me emociona, eu fico em lágrimas. Eu sou um bobo como músico. Mas tenho o outro lado, racional e muito crítico, muito seco, que é um lado que quase não cabe na música, que precisa de outro veículo. Folha - Tem alguma coisa que você acha que não fez, uma canção, algum sonho? Chico Buarque - O que eu gostaria realmente e que eu me sinto incapaz é na hora de cantar, o artista em cena, no palco. Me sinto preso, me sinto exposto, não me sinto livre para ousar. Quando eu vejo um show do Caetano, dessas cantoras todas, do Gil, o prazer deles de estar no palco! O que também me atraiu na bossa-nova foi a estética da timidez. Estar com o violão e mostrar aquela sua música - você é um compositor que canta. Se não fosse isso eu não teria virado cantor. Eu pude me apresentar no palco porque havia uma permissão e até um estilo, numa época, para esse tipo de artista, o compositor que canta com o seu violão, protegido. O movimento tropicalista quebrou isso e me deixou um pouco atordoado. Enquanto artista eu já era insuficiente para a performance intimista. Naquele momento era quase inaceitável. Eu tenho quase um pudor de estar ali cantando. Folha - Além de jogar futebol (atualmente Chico joga três vezes por semana e é bom jogador), o que você mais gosta de fazer fora da música? Chico Buarque - Tenho muita vontade de reler. Tem um livro que volta e meia eu leio sem compromisso, porque é um diário lindíssimo, do Ernest Junger. Agora estou lendo "A Caixa Preta", do Amos Oz. O último livro brasileiro que eu li é um livro escrito em portunhol, chama-se "Mar Paraguaio". Folha - Qual seria seu cineasta predileto? Chico Buarque - Fellini e Buñuel. Mas eu me sinto muito mais em casa com Bunuel, não é um juízo de valor, é uma questão de afinidade. Folha - E qual a cantora que você tem mais afinidade? Chico Buarque - Eu acho que a Gal, a Bethânia, a Nara. Eu sempre gostei mais da minha música cantada por outras pessoas. Não vou fazer aqui uma distinção entre elas, que eu não sou louco - até porque elas são muito diferentes. Acho que eu sei que música Gal cantaria melhor, que música seria mais adequada para Bethânia e Nara, que não está mais aí. Folha - Existia o mito de que você bebia muito. Você diminuiu? Chico Buarque - Não era mito não, eu bebia muito. Bebia todo dia e bebia coisas fortes. E fui parando, comecei a enjoar, não é nenhum mérito meu não, acho que meu organismo é que foi pedindo água. Então hoje eu só tomo vinho, cerveja, e nem todo dia. Folha - Droga você nunca experimentou? Chico Buarque - Já experimentei drogas também, experimentei e gostei. Mas parei com as drogas ilegais. Cocaína, nunca mais. Na verdade as drogas nunca foram um problema sério para mim, mas poderiam vir a ser, porque eu tenho uma certa propensão ao vício. Sou uma pessoa que cria hábitos, se eu fosse supersticioso seria impossível de tratar, tenho facilidade para criar manias e luto contra isso. A única droga que realmente me afeta hoje é o cigarro, sou um fumante compulsivo, então procuro me disciplinar. Isso poderia ter acontecido em relação ao álcool, ter virado um alcóolatra e talvez tenha chegado perto. Consegui, por algum motivo que não é tanto disciplina, poder beber socialmente, de vez em quando. Mas ainda assim, se eu entro numa temporada de shows, tenho que tomar vinho. Folha - Você dança? Chico Buarque - Não, sou meio desajeitado, sou desengonçado. Quando eu danço as pessoas acham graça... Folha - E das manias do cotidiano? Chico Buarque - Gosto de andar. Eu sou um andarilho, ando, ando e penso melhor andando. Daria uma entrevista mais brilhante se tivesse um outro andarilho ao meu lado com gravador. Folha - A gente pode tentar da próxima vez. | |
Folha de São Paulo - 09/01/94 |
4 Comentários
Que bom ler essa entrevista!!
Beijo
Polly
ecah...
Ótimo ler esta entrevista!
Me senti até mais próximo de Chico.
Obrigado!
Boa entrevista, obrigado por posta
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