domingo, 27 de março de 2011

O que a mulher quer do homem?

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O que a mulher quer do homem?

Luciene Godoy*


Recentemente um cliente pediu-me, com uma carinha meio marota, meio desconsolada, que escrevesse sobre o que as mulheres querem dos homens. "Nós homens estamos tão perdidos quanto ao que as mulheres esperam de nós! Estamos confusos." Com razão, porque antes sabia-se o que as mulheres queriam dos homens. Hoje não mais!

Antes, elas queriam ter um homem que lhes desse o sustento e filhos. Todo o valor social que uma mulher podia ter vinha do fato de se tornar "mãe de família". Uma mulher bem-sucedida, há poucas décadas atrás, que não fosse casada, era uma coitadinha, tão competente... mas "ficou prá titia!". Nem dinheiro, nem profissão, nem inteligência lhe conferiam, de fato, valor social. Só o casamento e principalmente a maternidade. Por isso as piadinhas: "ela laçou um bobo". Ter um homem era o fito, já que tudo o mais adviria disso.

O homem também tinha a sua posição marcada no jogo social se tivesse constituído uma família e se tornado um "homem de respeito". Também era respeitado por ter uma profissão, por ser inteligente e até mesmo não se perdia o respeito por ele se desse suas escapadinhas. O direito ao prazer sexual lhe era assegurado.
E agora José? A festa acabou. O mundo mudou e as mulheres também podem querer algo mais de um homem, além de que seja seu provedor e pai dos seus filhos.

Mas, afinal de contas, o que é que elas querem?

Sim, porque é bem sabido que os homens querem uma "amante na cama e uma dama na sociedade". Alguém contra? Eu acho uma ótima ideia, só que esta junção raramente se realiza. Então, qual a saída? Para ter prazer a mulher também vai "pular a cerca"?

Não! Eu tenho pra mim que o que querem as mulheres de hoje é o mesmo que os homens: um amante na cama (desbancando os malandros que tanto as atrai, que sabem seduzir e se fazer desejar) e um cara amigo e confiável fora dela.

Esta síntese pode ser pensada se considerarmos que amor, ternura pertencem a um campo, e desejo, tesão a outro, e que cada qual tem o seu momento de prática.

O amigo é aquele em quem confiamos, com o qual contamos, que preza a amizade o convívio, as afinidades.
O amante é aquele do qual nunca saberemos tudo. Nos deixa meio inseguras, sem saber o que ele pensa e o que é. Não é previsível. Romantismo demais? Não, essas são qualidades que todo ser humano tem se não estagnar-se, inclusive numa relação com uma falsa segurança (leia-se "morta").

O amigo traz segurança, o amante insegurança que provoca emoção, desejo.

Vale tentar?

 Luciene Godoy é psicanalista▩; foto do filme "Uma mulher é uma mulher", de Jean-Luc Godard.

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quinta-feira, 24 de março de 2011

"Somos todos ciborgues"

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"Somos todos ciborgues", diz filósofa digital

DIÓGENES MUNIZ*


Como boa parte daquilo que bomba na web na velocidade da luz, Amber Case é jovem (tem 24 anos) e se apresenta com um trabalho potente, porém embrionário (o primeiro livro dela deve sair ainda neste ano).
Na revista "Fast Company", uma das publicações sobre inovação e tecnologia mais respeitadas, a jovem foi descrita como "nativa digital do futuro que viajou de volta no tempo para nos ajudar a descobrir como pensar".

Suas palestras foram dadas, por exemplo, ao ciclo de conferência TED (Technology Entertainment and Design) ou ao prestigioso Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT. Nelas, Case prega que a tecnologia humaniza ao mesmo tempo em que nos dá status de ciborgues.



Norte-americana Amber Case

"Não somos como Robocop ou o Exterminador do Futuro", diz, "mas somos ciborgues toda vez que olhamos para uma tela de computador ou quando usamos os dispositivos dos nossos celulares".
Somos ciborgues "mentais", portanto. Em vez de usarmos pernas robóticas, temos supercelulares, extensões da nossa capacidade de ouvir e se locomover.


Afinal, se precisarmos ficar frente a frente com alguém que está do outro lado do mundo, basta pegar um iPhone e acessar o dispositivo de teleconferências FaceTime. É o equivalente, diz Case, a uma viagem no tempo e no espaço.

A maioria das pessoas não enxerga o tamanho da mudança comportamental que isto traz, segundo a jovem filósofa, porque os itens tecnológicos estão cada vez mais orgânicos. Leia aqui a entrevista completa com Case.

Folha -Por que estamos nos tornando ciborgues?
Amber Case - Você é um ciborgue toda vez que olha para a tela de um computador ou usa um celular, porque está entrando numa relação tecno-social com um pedaço de tecnologia não-humana. Nossos celulares, carros e laptops tornaram-se ciborgues porque nós os empregamos para fazer coisas que não conseguimos como simples indivíduos. Nossos corpos podem estar nos mesmos lugares, mas nossas identidades e pensamentos estão viajando pelo globo.

E o que faz uma antropóloga ciborgue?
A antropologia ciborgue olha para a cultura moderna e dá um passo para trás para tentar enxergar o que está realmente acontecendo hoje. Durante a revolução industrial, boa parte da evolução da tecnologia estava relacionada à extensão do nosso corpo físico. Hoje, enquanto vivemos a revolução da informação, a evolução da tecnologia está relacionada à extensão da nossa mente. Um antropólogo ciborgue, portanto, estuda a interação entre humanos e não-humanos, incluindo o fluxo da informação e o uso de computadores e telefones.

Como esses objetos de estudo mudaram nosso comportamento?
Vivemos um tempo em que as pessoas usam sites como Facebook e Twiter para criar suas identidades. Hoje, as pessoas têm um "segundo eu" na rede. Milhões delas utilizam o que eu chamo de "templates self", ou seja, usam sites construídos para receber fotos, conteúdo e atualizações de status de alguém sem que essa pessoa necessariamente saiba, veja ou entenda as engrenagens por trás do serviço.

Como humanos, somos dependentes de socialização, mas a maioria de nós não vive em pequenos vilarejos onde essa socialização é padronizada e culturalmente mediada. Em vez disso, a maioria vive em cidades, tem seu trabalho, mora em apartamentos sem saber quem são seus vizinhos de andar.

A tecnologia nos permite superar esse modelo de vida moderno, permite nos conectar a alguém quando estamos sozinhos no aeroporto, na fila do supermercado, em nossos carros. Isso compensa o isolamento imposto pelo modo de vida atual e o rápido intercâmbio de novos contatos e amigos.

Sites como Facebook são o "fast-food" da interação social. Informações pertinentes extraídas de integrantes de nossos grupos sociais são servidas em fatias, perfeitas para petiscarmos durante momentos de tédio proporcionados pelo isolamento de nossas vidas modernas

Embora muitos devam preferir encontros na vida real, não há tempo suficiente para distribuirmos entre tantos amigos tão próximos. Por outro lado, com narrativas curtas e sem qualquer formalidade social, a toda hora estamos mantendo contatos com pessoas.

Você acha que a computação em nuvens é um dos fatores para estarmos virando ciborgues?
Sim. Muito da nossa identidade, comunicação, história e informação --o que guardaríamos em nossos cérebros ou num espaço físico-- estão cada vez mais sendo armazenados em nuvem.

Para acessarmos isso tudo, precisamos usar termos de busca ou senhas, bem como a própria interface do computador. Porque computadores são muito poderosos, mas só durante alguns anos, até precisarem ser trocados. Ou seja, precisamos sempre fazer a manutenção de nossas próteses externas para poder ter acesso às extensões de nossos cérebros e identidades.

Computação em nuvens significa que há muita informação invisível sendo baixada e acessada. E é mais fácil colocar informação nesta nuvem do que tirar de lá. Se você eventualmente perder essa informação, isso significa que você sofreu uma perda na sua mente. Você automaticamente vai sentir que está faltando algo [em você]. É uma emoção muito estranha.

Você diz que a internet cria um ambiente de maior intimidade com nossos contatos. Quais são as consequências disso?
As consequências são que você provavelmente não vai se sentir tão sozinho quando estiver viajando por uma cidade que não conhece, ou um lugar que já é tradicionalmente chato. Ou em pé numa fila, fazendo tarefas repetitivas, sentado na sua mesa no trabalho.

Mas há uma diferença entre um amigo virtual e um real, não?
Sim, a principal diferença é que o amigo virtual não está tão amarrado geograficamente quanto o real. Quando alguém faz uma amizade pelo Facebook e essa pessoa vai para outro país, não há qualquer limitação na relação. Pelo contrário: há uma vasta variedade de maneiras com que essas pessoas podem se conectar, SMS, Twitter, Skype etc.

Existe outro benefício de não se estar preso à geografia: cada vez mais encontramos as mentes das pessoas antes de encontrar os corpos delas. Deste modo, pessoas com interesses similares que estariam impedidas de se relacionar por conta da distância podem se comunicar on-line. Um amigo virtual pode ser mais próximo do que um analógico a partir do momento em que as exigências que a comunicação "olho no olho" costuma trazer são minimizadas.

* publicado no jornal FolhaSPaulo em fevereiro de 2011.

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segunda-feira, 21 de março de 2011

O melhor café expresso de Goiânia (mês de fevereiro 2011)

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O melhor café expresso Goiânia

Lisandro Nogueira


A confraria do café voltou a aferir os sabores do "expresso" servido em Goiânia. Eles percorrem os cafés e anotam os sabores conforme o critério da Illy (www.illy.com.br).

 Segue abaixo a listas dos cinco melhores do mês de Fevereiro:

. Ateliê do grão - Tribo do Açai no setor Marista.
. Café e Delícia - rua 9 - setor Oeste -  em frente Praça do Sol
. Tabacaria n. 1 - Setor Bueno-  em frente Shopping Buena Vista
. Café do Mundo - Shopping Bougainville
.  Café do Ponto - shopping Flamboyant.

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sábado, 19 de março de 2011

Mostra de filmes de Jean-Luc Godard começa segunda-feira

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Biscoito fino no cinema, Godard

 Lisandro Nogueira*


O Cine-UFG apresenta a mostra “Jean-Luc Godard” de 21 de março a 1º de abril, em homenagem ao cineasta francês que revolucionou o cinema e sua linguagem. Ele fez parte do movimento Nouvelle Vague (anos 50-60) ao lado de Claude Chabrol, Eric Rohmer, François Truffaut. Com eles, modernizou a linguagem cinematográfica ao privilegiar a metalinguagem, a narrativa não linear e o cinema de autor. Godard levou ao limite essa última característica. Seus filmes autorais privilegiam a arte-cinema em detrimento da indústria cultural cinematográfica.

Vamos exibir as obras mais importantes e significativas: desde as obras da fase da Nouvelle Vague, passando pelos filmes de forte apelo político dos anos 60-70 e culminado com a fase mais recente: o belo filme “Nossa música” (libelo político sobre guerra da Bósnia-Servia). São filmes criativos, irônicos e possuem uma visão bem particular do “ser no mundo” e relação com a arte e a vida. 

 Programação: 






12h
17h30
21.03
Je Vous Salue, Marie
Alphaville
22.03
O pequeno soldado
Carmen de Godard
23.03
O demônio das onze horas
Acossado (debate)
24.03
Banda à parte
A chinesa
25.03
Acossado
O desprezo
28.03
Week-end a francesa
Nossa música
29.03
Viver a vida
Acossado
30.03
Carmen de Godard
(debate)
31.03
A chinesa
Viver a vida







Debates:

Filme: “Acossado”
23 de março, quarta-feira – após a sessão das 17h30
Debatedores: Adele Lazarin, Carolina Soares e Fabricio Cordeiro (Cine-UFG, debates)
Mediação: Lisandro Nogueira

filme: "Viver a vida"
30 de março, quarta-feira, após sessão das das 17h30
Debaterdor: Rodrigo Cássio
Mediador: Agostinho Potenciano

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quinta-feira, 17 de março de 2011

Só precisamos de amor

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Só precisamos de amor
Luciene Godoy*


All we need is love.
(The Beatles)
"Tudo que necessitamos é de amor." Eles dizem, eu assino em baixo!

'Repito o que já disse antes: o amor para a psicanálise é um laço. É a relação que construímos com algo ou com alguém. É a história que desenvolvemos ao longo de uma caminhada com suas dificuldades e seus ganhos.

A sociedade de consumo nos desvia desse caminho nos incitando a comprar e comprar; consumir e consumir; pular do recém-adquirido para o próximo. Assim não criamos laços, não usufruímos do melhor que qualquer objeto tem a nos oferecer: o tempo que passamos, que gastamos com ele.

O tempo é uma preciosidade...

Porém, se compro um objeto qualquer já pensando no próximo, não passo nenhum tempo com ele, sabe, assim como acontece com aqueles livros que demoramos lendo, a cada dia saindo de nossa vida cotidiana e entrando na história do livro. Com o tempo e por causa dele, aprendemos a conhecer e ter sentimentos por cada personagem.

Se não houver tempo junto, então eu não vivi com aquele objeto e ele passou por mim, mas não me pertenceu!

O que estou chamando de tempo junto não é carregar sempre o objeto no bolso ou estar sempre com ele por perto. É, isto sim, permanecer com seu desejo pousado sobre ele, contornando-o, degustando-o, como um sorvete que lambemos até o último pingo. É o usufruto, o descobrir todas as possibilidades, todas as "novas posições" para curti-lo antes de, na sua mente, já jogá-lo no lixo, pensando incessantemente no outro sem nem mesmo ter descoberto o que teve. Triste destino... muito desperdício... pouco prazer...
Ao invés de ter tudo, como muitos comerciais nos convencem ser o desejável, adquirimos muito, mas não usufruímos.

Na fúria consumista para tudo ter, acabamos nada tendo a não ser o vazio das tentativas vãs.
Vivemos no vazio, sem uma vida significativa porque sem amor, sempre olhando o que não temos e querendo mais, sem saber o que fazer do que já possuímos, sem dar conta de usufruir.

O que torna um objeto valioso é o envolvimento, o tempo que se passa com ele. É o que cria a intensidade!
O amor é o maior e mais lindo acontecimento da vida! O mais importante também!

Só posso concordar com a música dos Beatles, que também poderia ser traduzida assim: "Só precisamos de amor".

Amar o que temos já é um bom começo.

* Luciene Godoy é psicanalista em Goiânia. Publicado no jornal O Popular 16.03.2010. Foto: Fuente: http://i34.tinypic.com/311qsjp.jpg.

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segunda-feira, 14 de março de 2011

"Cisne negro", dois textos, duas visões: Herondes Cesar e João Fantini.

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Cisne branco versus cisne negro

“Cisne Negro” não é uma obra-prima, mas está longe de ser descartável

Herondes Cesar*


Herondes Cezar*

Intelectuais costumam torcer o nariz diante de filmes que simplifiquem questões complexas. Como se certos assuntos não pudessem ser tratados em linguagem cinematográfica acessível ao grande público. O filme “Cisne Negro”, de Darren Aronofsky, aborda um tema próprio de consultório psiquiátrico, mas traduzido dramaticamente para o entendimento de gente comum. Embora venha encantando o público, o filme tem suscitado da crítica opiniões contraditórias.

É a história de Nina (Natalie Portman), uma bailarina delicada, meiga e imatura. Ela é assim por ter sido mimada pela mãe controladora e repressiva, uma ex-bailarina frustrada. Nina está em vias de interpretar, em um teatro de Nova York, o principal papel do balé “O Lago dos Cisnes”, que se divide em duas metades opostas: o cisne negro e o cisne branco.

Leroy (Vincent Cassel), coreógrafo do espetáculo, entende que Nina encarnará à perfeição o cisne branco. Mas tem dúvida se ela será capaz de interpretar o cisne negro, que requer a exteriorização do seu lado sensual, ou selvagem, reprimido pela educação materna.

A ingênua bailarina, que vislumbra no balé a realização de um sonho, acaba envolvida num terrível pesadelo. Às dificuldades do papel somam-se os ataques desencadeados por sua nova e invejável posição. A veterana primeira bailarina (Winona Ryder), afastada da companhia em razão da idade e substituída por Nina, agride-a verbalmente com a crueldade dos derrotados. Lily, uma bailarina novata mas safa, parece ter as qualidades que lhe faltam e, ainda, não disfarça que também quer interpretar os cisnes. Para completar, Leroy atinge-a no seu ponto mais vulnerável, assediando-a sexualmente.

A concorrente que tira o sossego de Nina, Lily, é uma garota avançadinha proveniente de São Francisco. O nome da sua cidade de origem é dito e repetido, de modo a chamar atenção para alguma particularidade que o público americano deve conhecer muito bem. A julgar pelo comportamento da personagem, admiravelmente interpretada por Mila Kunis, tudo indica que São Francisco é uma versão moderna das cidades bíblicas Sodoma e Gomorra. É pela ação dela que o erotismo penetra na história, e de forma escancarada.

O clima de competição, conflito e pressão desestabiliza o frágil equilíbrio emocional de Nina e, progressivamente, deteriora sua estrutura psíquica. Ela mergulha num processo delirante irreversível. O seu lado sombrio se manifesta, porém, sem que ela consiga manter o autocontrole, a energia maligna se volta contra a energia benéfica. O cisne negro acaba devorando o cisne branco.

Coerentemente com a dualidade temática, recorreu-se em vários momentos do filme às cores branco e preto para sinalizar o positivo ou o negativo. Isso, ao que parece, tem desagradado a muita gente. No entanto, é um recurso visual tão velho quanto o próprio cinema, que por décadas só podia contar mesmo com o bom e velho preto-e-branco. Esse recurso estético, aliás, é ainda mais antigo, como se observa na história da pintura. Não se trata, portanto, de aspecto em si condenável, que se possa alegar para definir a qualidade de um filme.

Dizem que Natalie Portman se preparou longa e exaustivamente para o papel e, para ter o físico de bailarina, emagreceu quase dez quilos. Também foi dublada, em várias cenas, pela bailarina Sarah Lane. Mesmo assim, quando teve de aparecer diante de uma bailarina de verdade, seus movimentos não são muito convincentes. Mas isso importa pouco, afinal de contas, porque certamente não existe no mundo uma bailarina capaz de interpretar tão bem quanto ela.

O filme não é, como se poderia pensar, sobre o balé “O Lago dos Cisnes”. Não é nem mesmo sobre balé. Este apenas fornece o contexto para o drama de uma personalidade débil que se dilacera entre as forças do bem e do mal da sua própria alma. Mesmo a música da dança não é a que Tchaikovsky compôs, mas uma variação dela, e bastante modificada. Mas, em última análise, fica demonstrado que a leveza e a graça do balé são construídas à custa de muito empenho, angústia e dor.

Um diálogo entre Leroy e Nina traz à baila um debate crucial para artistas ambiciosos. A bailarina pretende alcançar a perfeição mediante submissão à técnica e controle absoluto dos movimentos. Para o coreógrafo, isso não basta. Ele quer que ela se solte e ouse para atingir a transcendência. Neste particular, é bem possível que Leroy esteja sendo porta-voz de Darren Aronofsky, que, sem dúvida, comete seu tanto de ousadia. “Cisne Negro” não é uma obra-prima, mas está longe de ser descartável.

* Herondes Cezar é crítico de cinema e um dos fundadores do Cineclube Antônio das Mortes. Publicado originalmente no Jornal Opção


João Angelo Fantini*

Incrível que o filme tenha se tornado popular, pois eu o vejo como um espetáculo de cenas de castração de fechar os olhos. A beleza que há (e há muita) é constantemente recoberta pela intrusão obscena de imagens aterrorizantes, como a impossível masturbação que só se completa com imagens de despedaçamento do corpo ou outras formas de alucinação. Consigo entender este aparente enigma como uma forma de escopofilia mórbida, aquela que aumenta os engarrafamentos quando os motoristas passam devagar por um acidente, procurando por corpos dilacerados.

Por que receita para psicose ? Explico em poucas palavras: uma mulher tem um filho + faz deste filho uma extensão imaginária de si + não aparece ninguém (um pai ou qualquer outro terceiro) que estabeleça uma distinção entre estes dois seres = psicose. Assim, o destino do psicótico fica preso ao destino da relação mãe-criança.

Lacan afirmava que a castração se faz pela via simbólica (mais ou menos como nós funcionamos, os neuróticos, que reclamamos do mundo/dos pais/do governo que não nos permitem sermos "felizes" e completos). No filme, esta castração não realizada é encenada como acontece na psicose,  com imagens aterradoras que ameaçam o sujeito: o duplo (desde o início do filme Nina vê figuras idênticas no metrô, etc.); as figuras perseguidoras (Lily/Lilith - o demônio em forma humana - que concorre em tudo com ela, seja pelo lugar no espetáculo, seja pelos homens); as vozes que ameaçam/humilham/assustam; as percepções estranhas do próprio corpo.

Como o personagem precisa ser angelical e, ao mesmo tempo, demoníaca, Nina (Natalie Portman) não consegue representar duas coisas diferentes, contraditórias: ela precisa se tornar (no Real) duas pessoas. A entrada na sexualidade, pela qual é cobrada, depende de algo que ela não realizou a contento, a castração que sustenta o desejo.

Também faz parte da receita o momento da história do sujeito. Mesmo tendo alucinações e delírios casuais, Nina seguia com sua psicose "incubada", vivendo como uma menina que não cresceu, que ainda estava a caminho de chegar a algum lugar. Quando ela é nomeada (como o Schreber de Freud), isto é, quando tem que assumir um lugar simbólico definido (ser reconhecida socialmente e ter que responder por isso), a psicose se desencadeia.

Buscar a perfeição é uma forma de buscar a completude impossível, eliminar a falta fundamental que nos torna humanos.
Aronofsky parece gostar de situações limites, mas sua narrativa me soa sempre didática demais (claro/escuro, preto/branco, imagens especulares, delírios explicados); também O Lutador (Wrestler, 2008), Réquiem para um sonho (Requiem for a Dream, 2000) e Pi (π, 1998) são histórias que se acercam dos medos fundamentais humanos: perder a liberdade, morrer, ficar louco.

Black Swan serve de consolação neurótica. As coisas podem ser bem piores do que você imagina.

* João A. Fantini é professor na Federal de São Carlos (SP).

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sábado, 12 de março de 2011

Cine-UFG: mostra Lars Von Trier - começa c/ "Dogville" na segunda-feira.

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O CINEMA DO DESCONFORTO
Carolina Soares*

    “Trabalho para mim mesmo. Não devo satisfação a ninguém. Não tive escolha [ao fazer o filme]. Foi a mão de Deus, eu temo. E eu sou o maior diretor de cinema do mundo. Não sei se Deus é o melhor Deus do mundo”. A declaração de Lars Von Trier, quando questionado sobre o sentido de Anticristo, seu último filme, resume um pouco sua personalidade polêmica e provocadora. O diretor dinamarquês, conhecido por seus filmes densos, impregnados de uma visão pessimista do mundo e do ser humano, descreve a si mesmo e a seus filmes como “uma provocação”. Seu cinema é uma maneira de desafiar o público, jogando-o de encontro a um universo ficcional em que o mal está sempre presente, de forma brutal e definitiva. Cada filme seu é antes uma composição de fragmentos significativos do que uma narrativa a ser “entendida” ou, ainda, “explicada”.

        Lars Von Trier é um diretor do desconforto, de um “cinema da crueldade” pós-moderno, cujo sadismo é justificado pelo objetivo de revelar ao espectador a crueza do mundo, assim como a sua própria crueldade, intrínseca à condição de ser humano. Os filmes de Trier mostram como o homem é o principal devorador do homem, como os bons sentimentos podem ser belos, mas redundam num nada de incompreensão pelos outros homens. As personagens do diretor, ora indiscutivelmente alegóricas, ora misteriosas, retratam a miséria do mundo em uma crescente de suplícios e violência (seja ela física ou psicológica) a que são submetidas.
    Em parceria com Thomas Vinterberg, Trier criou o movimento Dogma 95, a partir de um manifesto elaborado por ele e outros cineastas dinamarqueses, que propunha um rompimento com o preciosismo técnico e o predomínio das grandes produções. O manifesto criticava tanto o cinema clássico quanto o cinema moderno: o primeiro representado pela produção hollywoodiana e seu ideal “ilusório” e “cosmético” do cinema e o último englobando a política dos autores, a nouvelle vague e o cinema moderno herdeiro desses movimentos, que, segundo o manifesto, eram também uma ilusão, pois “o conceito de autor era um romantismo burguês desde o começo”. 

O movimento propõe como solução um cinema que negue a autoria e ressalte a história e as personagens, por meio de uma estética mais “real”, destituída do ilusionismo técnico e constituída de imagens que não são transparentes para o espectador. Sob o plano técnico, o manifesto prega a proibição de toda forma de artifício e de jogo com o espaço-tempo (o filme deve se passar aqui e agora), assim como exige a utilização da luz e do som natural dos ambientes. 

        O filme de Lars Von Trier que materializou as determinações do Dogma 95, Os idiotas, de 1998, estarreceu o público e a crítica, mostrando que sua proposta conforme os mandamentos poderia, de fato, resultar em uma história interessante e coesa. Embora apresentem elementos propostos pelo Dogma 95, grande parte dos filmes do diretor feitos após o manifesto não é totalmente fiel ao movimento. Há críticos que até afirmam ser o cinema de Lars Von Trier, em sua essência, um cinema de autor. Trier, em entrevista, declarou que cada um de seus trabalhos pede sua própria estética. 
                  
     Independentemente das controvérsias, o Dogma 95 teve e tem grande importância para o cinema contemporâneo, até mesmo porque, em uma época em que tudo é válido no cinema, a própria publicação de um manifesto foi em si uma provocação. Apesar de fundador e membro do Dogma 95, a carreira de Lars Von Trier como diretor – ou mesmo autor, como se poderia arriscar a dizer – de certa maneira, eclipsou o impacto do movimento no meio cinematográfico.
    Depois de Os idiotas, segundo filme da trilogia “Coração de ouro” (o primeiro foi Ondas do destino, de 1996), baseada em um conto de fadas dinamarquês de mesmo nome, Trier produz Dançando no escuro (2000), que fecha a trilogia. No conto, uma menina sempre se sacrifica para ajudar os outros, sem pensar em si. Nos filmes, mulheres inocentes e abnegadas, quase “santas”, ou quase “bobas”, sacrificam-se e são massacradas pela maldade daqueles que as cercam. Nessas histórias, a santidade está sempre oposta à baixeza moral e aos valores mundanos, que prevalecem sobre o bem. 

    No musical dramático Dançando no escuro, estrelado pela cantora Björk, Selma, uma imigrante tcheca nos Estados Unidos, está ficando progressivamente cega em razão de uma doença, e se sacrifica para tentar conseguir que o filho, herdeiro da mesma doença, seja operado. Enquanto sofre, Selma sonha com um mundo mais bonito, aquele dos musicais clássicos, repletos das cores que ela enxerga cada vez menos. Para fugir da crueza da realidade, ela escapa para esse mundo de fantasia, tão diferente do seu. Quando são retratadas as cenas da vida real da personagem, os recursos técnicos utilizados para criar um clima próprio de grande frieza são aqueles já muito vistos na obra de Trier: a câmera de mão, as imagens tremidas e os cortes secos.

Entretanto, no mundo de sonhos, todos os ângulos das cenas de dança transbordam cores aos olhos dos expectadores, que sentem o alívio momentâneo da personagem, e saem compenetrados do mundo apagado de Selma. Essas cenas têm na trama a mesma função do coro nas tragédias gregas: são uma análise, um comentário sobre a ação. A história de Selma tem um caráter de melodrama, quebrado por essas cenas musicais que acontecem em sua mente e o espectador experimenta junto com ela. A tragédia é iminente e inevitável: sabemos que o destino da personagem não será o happy end dos musicais.

     Com Dogville, lançado em 2003, Lars Von Trier inicia uma nova trilogia: “EUA - Terra das oportunidades”. Como em várias tramas do diretor, a história se inicia com uma personagem frágil que é acolhida por uma comunidade e, pouco a pouco, vai se tornando mártir, uma mulher à mercê de uma sociedade cruel, que, em face de sua elevação moral e benevolência, transforma-a em vítima de seus impulsos mais vis. O elemento novo nessa história é a vingança, consumada como o reverso do mal. Em Dogville, o diretor criou o conceito de “filme fusão”, em que uniu elementos da linguagem da literatura, do cinema e do teatro. Para criar o conceito principal do filme, afirmou ter se inspirado no “teatro épico” de Brecht. A estética do filme configura-se um pouco como um “teatro filmado”, em que Trier dispensou os cenários e ambienta a cidade cenográfica apenas com marcações no chão e alguns móveis. 

Assim como no teatro, personagens abrem e fecham portas imaginárias e a ação acontece simultaneamente em vários lugares. À nova proposta estética, juntam-se, no filme, os elementos que consagraram o diretor dinamarquês, como o jump cut, a câmera na mão, os closes no rosto das personagens e a atuação estilizada. Embora possa ser considerado uma alegoria ou fábula política, Dogville é, em última instância, mais do mesmo existencialismo cáustico de Lars Von Trier, em que qualquer ato, seja nobre ou abjeto, redunda na mais absoluta insuficiência.

    Em Manderlay, segundo filme da trilogia sobre os Estados Unidos, a personagem principal é a mesma de Dogville, mas o enfoque de Lars Von Trier e, em consequência, o envolvimento que ele requer do espectador quanto aos acontecimentos na tela são inteiramente diferentes. Em Dogville, a princípio, nada se sabe a respeito de Grace, que emerge como a típica heroína melodramática: mulher frágil e sofrida, que enfrenta a população hostil que, depois de a acolher, abusa dela para, finalmente, expulsá-la da cidade a fim de reintroduzir a ordem. Com Manderlay, dá-se o contrário, pois o diretor trabalha justamente a partir da lembrança que a platéia possui do original. Von Trier não força a identificação sentimental com a protagonista para, ao final, revelar a verdade cruel, como em Dogville, mas antes parte do conhecimento desta verdade a fim de gerar o distanciamento que, afinal, está pressuposto na ausência de cenários, na explícita marcação teatral e na narração irônica, assim como está pressuposto em sua inspiração, o teatro de Brecht, 

     Anticristo, o filme mais recente do diretor, é uma das mais polêmicas obras dos últimos tempos, dividindo público e crítica em opiniões que vão do horror à adoração. O impacto do filme em Cannes foi alardeado pela imprensa do mundo todo e consagra Lars Von Trier, mais uma vez, como um grande provocador. Anticristo conta a história de um casal que perde o filho e decide se isolar em uma floresta para tentar se curar da dor. A partir daí, o filme torna-se progressivamente violento e perturbador, e o sadismo das imagens tem força e impacto aterrador . O filme está repleto de referências e simbolismos, em uma experiência calcada no poder da imagem, como não se via há muito tempo no trabalho de Von Trier. Existe, na iconografia de Anticristo, inegável significação, goste-se ou não do resultado.

·         * Carolina Soares é jornalista e membro do grupo “Cine-UFG, debates”. Publicado em O Popular, caderno Magazine, em 12 de março de 2010.
   

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quinta-feira, 10 de março de 2011

O medo - do que ainda temos medo no século 21?

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CAFÉ FILOSÓFICO | Entrevista com Luiz Felipe Pondé



por Fernanda Bellei
O medo, companheiro inseparável do homem, se manifesta em diversas formas e se desenvolve ao longo dos anos, acompanhando as mudanças estruturais e psicológicas de cada sociedade. Mas do que ainda temos medo no século 21? Para abordar este tema fascinante, o filósofo Luiz Felipe Pondé colocou o medo do divã e fez uma análise completa: filosófica, psicológica e religiosa, em seu módulo “Uma agenda para o medo”, que contou com palestras dos filósofos Oswaldo Giacoia e Zeljko Loparic e o historiador Leandro Karnal.
Veja a entrevista cedida por Pondé com exclusividade para a CPFL Cultura.
Estamos falando do homem como um animal consciente e que, portanto, tem medo e que procura na religião um conforto para seus temores. Mas pensando por outro lado: grande parte das religiões se referem ao homem como aquele que foi criado a imagem de Deus, por isso, ele tem o “aval” para dominar o mundo. Não podemos, então, interpretar que o princípio das religiões aponta para um homem prepotente e muito seguro de si? 

Muita gente fala isso hoje em dia. Inclusive com relação à tradição judaico-cristã, a taranica e a islâmica, também, de que a religião daria ao ser humano uma posição que pode levá-lo à arrogância. Isso é apontado por eticistas atuais, como o australiano Peter Singer. É uma idéia pela qual muitos biólogos se simpatizam, pois é uma perspectiva que coloca a vida como o centro, e eles chamam de biocentrismo, que tira a noção de antropocentrismo. Eles chegam a defender coisas como: entre uma criança doente e retardada, sem cérebro, e um chimpanzé inteiro, a ciência deveria usar, no caso, o segundo. É muito comum se culpar a tradição abraâmica por essa arrogância do ser humano.

Eu pessoalmente não concordo com essa idéia. Eu acho que a tradição abraâmica pode, sim, produzir arrogância no ser humano, agora, como bem mostrou o Karnal, as religiões servem para tudo! Ao mesmo tempo, a tradição cristão-judaica é acusada de ter produzido o homem mais deprimido da face da Terra. Então, tem os dois lados, mas eu acho que o homem é arrogante independente de Deus ou da religião... O homem é arrogante porque ele sabe mais que os outros animais, mesmo. Olha o mundo! A gente controla, faz, mexe... Macacos não fazem Café Filosófico! (risos). Agora, se isso quer dizer que a gente é melhor, eu não sei. É difícil comparar, inclusive porque quem inventa o critério de melhor somos nós. Eu tenho uma tendência a acreditar que este discurso tem um certo ressentimento, no sentido Nietzschiano, de que alguns seres humanos têm medo do fato de que, talvez, a gente esteja sozinho no planeta e o destino está em nossas mãos mesmo, até certo ponto. Ele não está nas mãos dos chimpanzés.
Qual é a principal característica do comportamento espiritual / religioso do homem no século 21? Como podemos interpretar a “fuga em massa” de fiéis de suas religiões tradicionais? 

O século 21 acabou de começar, a gente ainda não sabe o que vai rolar. Até agora, no que é parecido com o final do século 20, eu não acho que podemos afirmar que há uma fuga das religiões tradicionais porque o catolicismo se restabelece, o islamismo cresce, e ele é uma religião tradicional, o judaísmo ganha adeptos dentro do próprio judaísmo, já que ele não é uma religião que converte não-judeus, mas ela re-converte judeus que não obedecem a religião.

O que eu acho é que há um fenômeno que é dado principalmente pelo fato de que tudo virou industria cultural, de que uma certa parte da população consome religião assim como quem consome sabonetes, é assim: hoje eu acredito em um pouco de budismo, um pouco de Jesus, da teoria de Gaia, que diz que o planeta é uma deusa... É um fenômeno da indústria cultural, não da religião, mas que afeta a religião assim como afeta todas as outras coisas. E nessa medida, você tem um movimento de pessoas de classe social média e média-alta, que é fugir para formas alternativas de religião, terapias alternativas e crenças absolutamente sincréticas e voláteis. É o fenômeno de Deus como mercadoria.
Os avanços da tecnologia e da ciência que conseguem, hoje, tornar realidade coisas que eram impesáveis outrora, não estariam indicando ao homem que talvez não haja um Deus, e, por isso, todas as responsabilidades e conseqüências deste mundo estão em suas mãos? Essa não seria a razão do medo contemporâneo? Isto é: se hoje eu posso fazer o que eu quiser, se posso explodir o mundo cem vezes, quem manda em mim? 

Sim, eu acho que há um pouco disso, inclusive eu até falei com o Leandro Karnal sobre isso no final da palestra. A sociologia do ateísmo mostra que você tem ateísmo principalmente em países onde há pouca população, alto nível social, alto nível de educação e de saúde e onde o machismo é reduzido. São países como Noruega, Dinamarca, Suécia, Islândia, Canadá, Austrália e até Israel, que é um país altamente secularizado, ao contrário do que se imagina. Além disso, podemos encontrar ateísmo dentro de qualquer sociedade ocidental ou não-ocidental onde vivem pessoas com alta formação cultural e muito conhecimento cientifico. Mas sobre o medo... Tem pessoas que morrem de medo mesmo sendo religiosas. Porque veja bem: se você acredita em um Deus julgador e na vida eterna, e se você acha que pode se dar mal durante a vida inteira, a vida eterna é assustadora. Para algumas pessoas, o fato de não existir nada talvez seja uma salvação, isto é: quando eu morrer, acabou, estou livre.

Psicologicamente, eu não acredito que muita gente esteja nesta categoria, eu acho que a maior parte dos seres humanos morrem de medo e tendem a querer preservar a vida, daí a crença na vida eterna. Eu acho que não há dúvidas de que, em uma sociedade como a nossa, onde você tem uma pasteurização das crenças na classe média e média alta, que é a classe que faz cultura, faz Café Filosófico, televisão, academia, isso acaba produzindo, nesse nível, de uma classe mais sofisticada, um sentimento de desorientação. Porque o problema é seguinte: você não acredita em algo porque descobre que, psicologicamente é importante acreditar. Você acredita ou não. Nesse sentido sim, acho que podemos falar em um certo pânico contemporâneo, em um sentimento de solidão cósmica.
Mas não no sentido de estarmos sentindo a responsabilidade pesando mais? 

Eu acho que essa é uma idéia que estava no existencialismo do Sartre. Eu acho que não cola, porque o ser humano tende a uma irresponsabilidade natural. A maior parte das pessoas que se acham atéias, autônomas e felizes, não têm esta responsabilidade. É claro que eles têm quando eles vão reciclar lixo, por exemplo, mas eu não acho que isso dê a eles uma angústia esmagadora como a de uma pessoa que pensa que existe um Deus eterno, dono do universo, julgador e que pode pegar no seu pé para sempre! Eu acho que a maior parte dos modernos otimistas, que pensam: “não existe Deus, vamos cuidar da vida”, eles podem até fazer movimentos sociais, e tal, mas na hora que eles descobrem que tem câncer, eles entram em pânico.
Você escreveu um livro sobre a obra do escritor russo Fiodór Dostoievski, chamado “Crítica e Profecia - Filosofia da Religião em Dostoievski”. Pois bem, no livro “Os Irmãos Karamazov”, Dostoievski descreve o encontro de um cardeal, chamado de o grande inquisidor, com Deus. O cardeal lhe diz: “para o homem, não há maior tortura que essa necessidade de encontrar o quanto antes alguém a quem confiar o dom da liberdade que a infeliz criatura recebe ao nascer”. Essa necessidade existe, realmente?

O Dostoievski pensa que a liberdade é uma maldição da qual o ser humano foge. É isso que representa a imagem de Jesus, ali, quando o inquisidor fala que ele só atrapalha, porque o ser humano não quer o verbo, quer o pão. O verbo está para a liberdade assim como o pão está para a vida controlada, mas tranqüila: isso está inserido na obra do Dostoievski da seguinte maneira: o ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus e um momento central desta semelhança é exatamente a liberdade que a gente tem. Mas, para o Dostoievski, o ser humano faz de tudo para não ser livre. E quando ele resolve criar uma liberdade sem Deus, que é a dos personagens suicidas, tudo que eles querem, na verdade, é se sentirem no lugar de Deus.

Só que quando o ser humano quer instaurar a liberdade do próprio ser humano, ele destrói a vida, pois ele só existe na relação com Deus. Além disso, ali o Dostoievski está acusando a igreja católica, pois é bem típico da tradição ortodoxa pensar que o catolicismo construiu um cristianismo opressor, que ao invés de deixar o ser humano na liberdade da relação direta com Deus, ele o coloca em uma relação de opressão racionalista.
Mas ele está denunciando também uma distorção do cristianismo pela igreja católica romana, não é?

Sim, ele está. Ele está identificando a igreja católica romana como um cristianismo falso e opressor. É claro, os ortodoxos pensam que o cristianismo verdadeiro é o ortodoxo. E ele está fazendo um elogio à liberdade, mas não é um elogio à liberdade política. Para o Dostoievski, a melhor teoria político-social que existe é o cristianismo original. É isso que aparece no outro romance dele, “Os Demônios”. Ele faz também uma crítica ao medo de que os homens têm da liberdade, o que é representado pelo fato de que Jesus não abre a boca no diálogo.

Ele deixa o outro livre, e o ser humano não quer ser livre. O que o inquisidor está dizendo a ele é: Jesus, você não entende nada de ser humano, ele não agüenta a idéia de estar diante do mistério, do fato de que ele não compreende a si mesmo, de que Deus é infinito... Ele quer alguém que use Deus para o colocar no lugar dele.
Como podemos diagnosticar, com certeza, que o homem contemporâneo sofre de medo? A humanidade não estaria, talvez, passando por um momento de questionamento de valores, já que nem a religião, nem a ciência conseguem mais explicar seu mundo? Este não seria um movimento saudável de descobertas? 

 Eu acho que o ser humano tem momentos de saúde, mas ele é estruturalmente doente. Prova disso é que ele morre. E ele também morre de medo de morrer. Eu não acho que a era contemporânea inventou o medo, eu acho que existem medos específicos da contemporaneidade. Por exemplo, a gente vive em uma sociedade cada vez mais obcecada pela segurança e pelo controle, e isso é um novo tipo de medo. Eu acho que há novos tipos de medo, falando socialmente e psicologicamente. A sociedade também está obcecada pela idéia de sucesso, logo, há um novo tipo de medo, que é o medo de fracassar profissionalmente, pois o nível de exigência está cada vez mais alto. O medo nasce junto com o ser humano, pois ele carrega dentro de si o seu futuro cadáver...

Este módulo, “Uma agenda para o medo”, foi pensado para analisar o medo desde sua estrutura, até por isso eu citei Darwin e Ernest Becker em minha primeira palestra. Nosso medo é estrutural, não é uma invenção, ele é uma priori da condição humana, embutido na condição da consciência da morte. Esse medo é tratado pela filosofia, pela psicologia e pela religião. Hoje, em 2008, vivemos com esse acúmulo de conhecimento e isso nos dá uma característica especial: a gente já sabe que a modernidade não deu certo. Como não ter medo?

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sexta-feira, 4 de março de 2011

Rivotril

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OU





Rivotril

Fernanda Torres*


Não sei se o homem das cavernas tinha mais ou menos ansiedade que um sedentário de meia-idade


NUNCA FUI corajosa. Depois do nascimento dos meus filhos, o instinto de preservação quintuplicou minha covardia latente. Lutei contra a natureza por quase 20 anos, mas a maternidade me venceu por completo.

Li com inveja e espanto a notícia de uma mulher que desconhece o medo. A síndrome de Urbach-Wiethe destruiu sua amígdala, uma estrutura em forma de amêndoa situada no fundo do cérebro, e desarmou seus alertas internos de proteção e perigo.

Seria isso uma benção ou uma danação?

O fim do ano de 2010 foi especialmente difícil para mim e os meus. Mortes na família, doenças graves, decisões urgentes e infecções sorrateiras culminaram no funil esperançoso de Natal e Ano-Novo. O resultado foi um temor angustiado que virou o ano de mãos dadas comigo e se recusou a voltar a um nível tolerável depois de passadas as festas.
O processo ansioso, cego e insistente, o choro que alimenta o choro, levou muitos amigos a me aconselharem uma visita a um psiquiatra. O nome que mais ouvi, antes mesmo do telefone de um especialista, foi o do milagroso Rivotril. A panaceia me foi descrita como um unguento milagroso, capaz de cortar a sinistrose pela raiz.

Em "O Erro de Descartes" (Companhia das Letras, 336 pág., R$ 63), Antônio R. Damásio faz uma advertência contundente a respeito do uso indiscriminado de antidepressivos. Segundo o neurologista português, abrir mão da tristeza é dar adeus a uma das poderosas armas evolutivas responsáveis por manter a raça humana em estado de atenção. Anular a dor seria uma solução tão estranha quanto desligar o radar para não sofrer com a antecipação da tempestade.

Eu não sei se o homem das cavernas, correndo diariamente o risco de ser devorado por uma besta-fera, tinha mais ou menos ansiedade do que um sedentário de meia-idade que assiste às infindáveis hecatombes cotidianas pela TV. Talvez a luz elétrica e o computador tenham nos trazido mais frustrações do que amparo, talvez as paúras de uma vida tão afastada da feroz mãe natureza só se aplaquem mesmo mediante o uso de medicamentos, não sei.

Eu sempre desconfiei das bulas reguladoras do humor; do humor, do sono e do apetite. E foi com tal desconfiança que me dirigi à psiquiatra, uma mulher inteligente de quem ouvi uma explicação bastante convincente para os efeitos benéficos que um antidepressivo, ou um ansiolítico, poderiam me trazer.

O cérebro é um órgão dotado de uma impressionante capacidade de se remodelar. Graças à essa plasticidade, nos recuperamos de derrames graves, aprendemos a tocar instrumentos e agimos com rapidez diante de situações-limite. Os neurônios acionam novas sinapses, criam vias alternativas, ligam e religam circuitos conforme a necessidade.

Mas a persistência de um estado melancólico, por exemplo, potencializa determinadas correntes neurais, fortalecendo uma rede funesta que impede o surgimento de novas saídas para o espírito. Como um rio sobrecarregado em uma enchente, a força das águas foge ao controle da própria vontade e deságua na chamada depressão.
O remédio interditaria o pessimismo vicioso e daria chance ao cérebro de se rearticular. Convencida a derrubar a fundação do muro das lamentações, experimentei o famoso Rivotril pela primeira vez, adiando a investida no antidepressivo.

Passei três dias sonolenta e algo abobalhada, evitei dirigir. No terceiro dia, desestimulada e apática, achei que estava pior que antes. Decidi não recorrer ao medicamento na quarta noite e tive dificuldade para dormir. Quando cogitei tomar uma gota do elixir para ir ao encontro de Morfeu, os sinos de emergência badalaram soltos sob a pele.

Nunca tive problema de sono. Qualquer droga, lícita ou ilícita, que mexa com esse metabolismo me arrepia os cabelos. Fritei no lençol até cinco da matina. Passei o dia seguinte imprestável e, no outro, depois de uma noite bem dormida e sem sedativos, acordei refeita.

O Rivotril me ajudou. Ele agiu como um elefante branco que a gente põe na sala e, no dia que tira, sente um alívio inaudito; mas não resolveu. Sem o auxílio da farmacêutica, recorri a um amigo que insiste em estar vivo há mais de 74 anos.

"Finja! Crie um personagem e finja ser ele", me disse Domingos Oliveira. "Quem enfrenta a realidade enlouquece, a única saída para a sanidade é uma dose de alienação. A arte é a única saída possível."
Não foi bem pela arte. Meu escapismo atendeu pelo nome de Fernando de Noronha. O mar, os bichos marinhos, o sol e a natureza agreste reverteram violentamente os fluídos da minha psique.

Bem que a psiquiatra avisou que uma ação desse tipo também poderia dar certo.


* Publicada originalmente na FolhaSPaulo. Publicada a pedido: Rosária Cardoso: psicóloga com especialiade em atendimento familiar.

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quarta-feira, 2 de março de 2011

Saudades sem fim de Vinícius de Moraes

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 Dois poemas, duas canções


Poética

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.

***
O Astronauta
Quando me pergunto
Se você existe mesmo, amor
Entro logo em órbita
No espaço de mim mesmo, amor

Será que por acaso
A flor sabe que é flor
E a estrela Vênus
Sabe ao menos
Porque brilha mais bonita, amor

O astronauta ao menos
Viu que a Terra é toda azul, amor
Isso é bom saber
Porque é bom morar no azul, amor

Mas você, sei lá
Você é uma mulher, sim
Você é linda porque é

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Blog do Lisandro © Agosto - 2009 | Por Lorena Gonçalves
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