segunda-feira, 14 de março de 2011

"Cisne negro", dois textos, duas visões: Herondes Cesar e João Fantini.


Cisne branco versus cisne negro

“Cisne Negro” não é uma obra-prima, mas está longe de ser descartável

Herondes Cesar*


Herondes Cezar*

Intelectuais costumam torcer o nariz diante de filmes que simplifiquem questões complexas. Como se certos assuntos não pudessem ser tratados em linguagem cinematográfica acessível ao grande público. O filme “Cisne Negro”, de Darren Aronofsky, aborda um tema próprio de consultório psiquiátrico, mas traduzido dramaticamente para o entendimento de gente comum. Embora venha encantando o público, o filme tem suscitado da crítica opiniões contraditórias.

É a história de Nina (Natalie Portman), uma bailarina delicada, meiga e imatura. Ela é assim por ter sido mimada pela mãe controladora e repressiva, uma ex-bailarina frustrada. Nina está em vias de interpretar, em um teatro de Nova York, o principal papel do balé “O Lago dos Cisnes”, que se divide em duas metades opostas: o cisne negro e o cisne branco.

Leroy (Vincent Cassel), coreógrafo do espetáculo, entende que Nina encarnará à perfeição o cisne branco. Mas tem dúvida se ela será capaz de interpretar o cisne negro, que requer a exteriorização do seu lado sensual, ou selvagem, reprimido pela educação materna.

A ingênua bailarina, que vislumbra no balé a realização de um sonho, acaba envolvida num terrível pesadelo. Às dificuldades do papel somam-se os ataques desencadeados por sua nova e invejável posição. A veterana primeira bailarina (Winona Ryder), afastada da companhia em razão da idade e substituída por Nina, agride-a verbalmente com a crueldade dos derrotados. Lily, uma bailarina novata mas safa, parece ter as qualidades que lhe faltam e, ainda, não disfarça que também quer interpretar os cisnes. Para completar, Leroy atinge-a no seu ponto mais vulnerável, assediando-a sexualmente.

A concorrente que tira o sossego de Nina, Lily, é uma garota avançadinha proveniente de São Francisco. O nome da sua cidade de origem é dito e repetido, de modo a chamar atenção para alguma particularidade que o público americano deve conhecer muito bem. A julgar pelo comportamento da personagem, admiravelmente interpretada por Mila Kunis, tudo indica que São Francisco é uma versão moderna das cidades bíblicas Sodoma e Gomorra. É pela ação dela que o erotismo penetra na história, e de forma escancarada.

O clima de competição, conflito e pressão desestabiliza o frágil equilíbrio emocional de Nina e, progressivamente, deteriora sua estrutura psíquica. Ela mergulha num processo delirante irreversível. O seu lado sombrio se manifesta, porém, sem que ela consiga manter o autocontrole, a energia maligna se volta contra a energia benéfica. O cisne negro acaba devorando o cisne branco.

Coerentemente com a dualidade temática, recorreu-se em vários momentos do filme às cores branco e preto para sinalizar o positivo ou o negativo. Isso, ao que parece, tem desagradado a muita gente. No entanto, é um recurso visual tão velho quanto o próprio cinema, que por décadas só podia contar mesmo com o bom e velho preto-e-branco. Esse recurso estético, aliás, é ainda mais antigo, como se observa na história da pintura. Não se trata, portanto, de aspecto em si condenável, que se possa alegar para definir a qualidade de um filme.

Dizem que Natalie Portman se preparou longa e exaustivamente para o papel e, para ter o físico de bailarina, emagreceu quase dez quilos. Também foi dublada, em várias cenas, pela bailarina Sarah Lane. Mesmo assim, quando teve de aparecer diante de uma bailarina de verdade, seus movimentos não são muito convincentes. Mas isso importa pouco, afinal de contas, porque certamente não existe no mundo uma bailarina capaz de interpretar tão bem quanto ela.

O filme não é, como se poderia pensar, sobre o balé “O Lago dos Cisnes”. Não é nem mesmo sobre balé. Este apenas fornece o contexto para o drama de uma personalidade débil que se dilacera entre as forças do bem e do mal da sua própria alma. Mesmo a música da dança não é a que Tchaikovsky compôs, mas uma variação dela, e bastante modificada. Mas, em última análise, fica demonstrado que a leveza e a graça do balé são construídas à custa de muito empenho, angústia e dor.

Um diálogo entre Leroy e Nina traz à baila um debate crucial para artistas ambiciosos. A bailarina pretende alcançar a perfeição mediante submissão à técnica e controle absoluto dos movimentos. Para o coreógrafo, isso não basta. Ele quer que ela se solte e ouse para atingir a transcendência. Neste particular, é bem possível que Leroy esteja sendo porta-voz de Darren Aronofsky, que, sem dúvida, comete seu tanto de ousadia. “Cisne Negro” não é uma obra-prima, mas está longe de ser descartável.

* Herondes Cezar é crítico de cinema e um dos fundadores do Cineclube Antônio das Mortes. Publicado originalmente no Jornal Opção


João Angelo Fantini*

Incrível que o filme tenha se tornado popular, pois eu o vejo como um espetáculo de cenas de castração de fechar os olhos. A beleza que há (e há muita) é constantemente recoberta pela intrusão obscena de imagens aterrorizantes, como a impossível masturbação que só se completa com imagens de despedaçamento do corpo ou outras formas de alucinação. Consigo entender este aparente enigma como uma forma de escopofilia mórbida, aquela que aumenta os engarrafamentos quando os motoristas passam devagar por um acidente, procurando por corpos dilacerados.

Por que receita para psicose ? Explico em poucas palavras: uma mulher tem um filho + faz deste filho uma extensão imaginária de si + não aparece ninguém (um pai ou qualquer outro terceiro) que estabeleça uma distinção entre estes dois seres = psicose. Assim, o destino do psicótico fica preso ao destino da relação mãe-criança.

Lacan afirmava que a castração se faz pela via simbólica (mais ou menos como nós funcionamos, os neuróticos, que reclamamos do mundo/dos pais/do governo que não nos permitem sermos "felizes" e completos). No filme, esta castração não realizada é encenada como acontece na psicose,  com imagens aterradoras que ameaçam o sujeito: o duplo (desde o início do filme Nina vê figuras idênticas no metrô, etc.); as figuras perseguidoras (Lily/Lilith - o demônio em forma humana - que concorre em tudo com ela, seja pelo lugar no espetáculo, seja pelos homens); as vozes que ameaçam/humilham/assustam; as percepções estranhas do próprio corpo.

Como o personagem precisa ser angelical e, ao mesmo tempo, demoníaca, Nina (Natalie Portman) não consegue representar duas coisas diferentes, contraditórias: ela precisa se tornar (no Real) duas pessoas. A entrada na sexualidade, pela qual é cobrada, depende de algo que ela não realizou a contento, a castração que sustenta o desejo.

Também faz parte da receita o momento da história do sujeito. Mesmo tendo alucinações e delírios casuais, Nina seguia com sua psicose "incubada", vivendo como uma menina que não cresceu, que ainda estava a caminho de chegar a algum lugar. Quando ela é nomeada (como o Schreber de Freud), isto é, quando tem que assumir um lugar simbólico definido (ser reconhecida socialmente e ter que responder por isso), a psicose se desencadeia.

Buscar a perfeição é uma forma de buscar a completude impossível, eliminar a falta fundamental que nos torna humanos.
Aronofsky parece gostar de situações limites, mas sua narrativa me soa sempre didática demais (claro/escuro, preto/branco, imagens especulares, delírios explicados); também O Lutador (Wrestler, 2008), Réquiem para um sonho (Requiem for a Dream, 2000) e Pi (π, 1998) são histórias que se acercam dos medos fundamentais humanos: perder a liberdade, morrer, ficar louco.

Black Swan serve de consolação neurótica. As coisas podem ser bem piores do que você imagina.

* João A. Fantini é professor na Federal de São Carlos (SP).

6 Comentários

Thiago Pena disse...

Como leigo em psiquiatria e psicologia, e um mero entendendor das coisas do dia-a-dia, achei o filme muito bom. Simples assim. Sessão lotada e todo mundo falando super bem. Os amigos que viram também gostaram. Por curiosidade, pesquisei na internet a opinião dos "internautas" espectadores do filme: a maioria gostou. Penso que divagações "psicóticas" não serão capazes de tirar o brilho (mesmo que seja pouco) do filme, como tenta o Sr. Fantini.

Expedito Gomes disse...

Dois bons textos. Cada um vê uma coisa. Vou voltar a ver o filme.

' disse...

É algo que acontece em muitos casos, quando um acontecimento, fato abre margem para uma grande discussão. É o que o cinema faz em alguns casos, quando não é ele a apresentar de primeira mão uma grande discussão.
Mas a questão é que para alguns, os temas tratados nos filmes são muito mais complexos, mais profundos. E ai já se parte para uma questão citada pelo Thiago, do nível de conhecimento sobre determinados temas.

Eu estou do lado do "longe de ser descartável". O estilo de filmagem, a estética, a trilha sonora, a violência de certas cenas, me agradam.

Maysa Puccinelli disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Maysa Puccinelli disse...

As considerações do texto do Fantini são próximas às minhas.
Cisne Negro é um filme interessante, a atuação da Natalie Portman é primorosa (como sempre), a história é envolvente, mas fica muito marcada uma impressão de didatismo psíquico. Tanto que o texto estabeleceu, com certo humor, uma fórmula para psicose.
Eu ainda proporia outra parecida: mãe perversa+ relação fusional especular + pai ausente = filha psicótica (possivelmente). Claro que as relações não são diretas assim, por isso o caminho que o diretor escolheu pra dizer da psicose e da cisão psíquica foi excessivamente literal.
Quanto aos cliches estéticos, apesar de muitos, não me incomodam, pois estão imbricados ao contexto do enredo. Especialmente pelo registro ambivalente dos elementos trazidos como pares de opostos: preto/branco, ativo/ passivo, belo/ grotesco.
Mas enfim, não deixa de ser um ótimo filme.

João A Fantini disse...

Ola a todos
Se nao ficou claro, gostei do filme.
No mais, utilizo o blog para me permitir certos psicologicismos que, acredito, não causam sérios danos a teoria.
obrigado pelos comentários e acrescimos!
abraços
Fantini

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