Ousadia, beleza e desejo
Lisandro Nogueira, Maria Luiza Rodrigues e Luiz Mello
O Cine UFG começou nesta semana (sessões às 12h e às17h30) a exibir uma série de filmes que são uma resposta inteligente, animada e provocadora a preconceitos de toda ordem. Diante da recorrência impressionante de ações, discursos e atitudes homofóbicas e racistas - além da crise vivida nos relacionamentos por homens e mulheres , para além do feminismo de outrora -, as produções escolhidas são uma excelente forma de colocar as coisas em outros termos. Ou seja, no clima neoconservador que parece nos assombrar, voltar os olhos e os ouvidos para o que contam as películas da mostra pode significar uma rara oportunidade de abertura para a alteridade e de momentos prazerosos e de reflexão profundos. Afinal, nada melhor do que respirar ousadia, beleza e te(n)são a partir de histórias que estão na fronteira entre o erotismo libertário e a opressão.
Todos os filmes exploram de modo exemplar as contradições que nos constituem como pessoas que buscam prazer e espécie que produz cultura. Como já nos ensinava o pai da psicanálise, S. Freud, nos idos de 1930, duas forças antagônicas operam embates irresolvíveis em nosso interior mais íntimo e nas nossas relações interpessoais: o impulso do gozo, simbolizado por eros, e o impulso de morte que habita o poder e é simbolizado por tânatos. Amor e ódio, vida e morte são pares que nos formam e que alguns diretores de cinema sabem trabalhar magistralmente.
Entre os 11 filmes que compõem a mostra, do Brasil podemos assistir a Eu Sei que Vou te Amar, de Arnaldo Jabor. Lançado em 1986, teve sua atriz principal, Fernanda Torres, premiada no Festival de Cannes. Trata da história de um jovem casal que se despedaça em tormentosa relação conjugal, numa espécie de terapia vertiginosa feita a dois, sem mediadores. As cenas nos conduzem a um mergulho no mais íntimo de suas experiências. A atração e a impossibilidade de completude se entrelaçam em falas e gestos cortantes.
Noutro diapasão, Dzi Croquettes, de 2010, nos brinda com uma revisita a tempos contraditórios: mostra a história de um grupo de jovens, os Dzi Croquettes, que revolucionou a cena teatral e artística brasileira através de muita ousadia e criatividade erótica, em pleno período dos anos mais pesados da ditadura brasileira. O filme nos convida a pensar nas inúmeras possibilidades de resistência em épocas conservadoras. É também um tributo cheio de emoção e nostalgia de um tempo que nos marcou profundamente.
Erotismo levado às últimas consequências é o que vemos em O Império dos Sentidos, do diretor japonês Nagisa Oshima, um clássico imperdível. Lançado em 1976, tem cenas de sexo explícito, de nudez e de erotismo que nos levam a pensar na proximidade entre beleza e crueza das nossas interações amorosas e sexuais. Podemos acompanhar a caminhada do casal protagonista que nos in(ex)cita a pensar sobre os sentidos de humanidade, amor, desespero e dor, sobre o impulso do prazer que se confunde com a pulsão de morte. Um filme fundamental na história do cinema.
De Bernardo Bertolucci, outro clássico: Último Tango em Paris, de 1972. Na tela, dois grandes artistas já falecidos, Maria Schneider e Marlon Brando, atuam em memoráveis cenas de sexo. O filme apresenta as contradições da relação de um casal que não diz seus nomes, numa cidade sombria e calada. Num apartamento para alugar, os dois mergulham numa busca paradoxal e que transcende limites. Prestem atenção na cena da sacada com Brando tirando o chiclete da boca.
Catherine Deneuve se consagrou como a esposa recatada e aparentemente bem casada que procura um bordel onde passa as tardes como prostituta, no fundamental A Bela da Tarde. Do grande diretor Luis Buñuel, o filme foi lançado em 1967 e ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza. Diante dos nossos olhos vemos desenrolar uma ação em que culpa, amor e incertezas se cruzam. O desempenho de Deneuve é memorável.
Numa ousadia que reúne cinema e crítica política, temos Sade, trabalhado através da câmera de Pasolini, em Saló ou os 120 dias de Sodoma, lançado em 1975. Esta combinação resultou num dos mais censurados e provocadores filmes em que a cena sexual é levada aos extremos das relações de poder. A história nos transporta para a Itália de 1941, durante os anos nazi-facistas, quando a hipocrisia moralista de Estados totalitários se mescla à destituição do outro, objetificado como instrumento de gozo.
Próximo em ousadia e em transgressão, Calígula, de 1980, dirigido por Tinto Brass, conta com a intensa atuação de Peter O'Toole e nos transporta a uma Roma em que a alcova, como parece ser quase sempre o caso em intrigas de Estado, determina os jogos de poder. Um imperador que ama sua irmã e que se relaciona com uma mulher comum num império repleto de intrigas. Crueldade, jogo eróticos e de poder afluem no desenrolar da história que vemos na tela.
Da América Latina temos XXY, a história de Alex, que não se sente menina ou menino. Realizado no contexto do que se costumou chamar de Nuevo Cine Argentino, o filme tem o aclamado Ricardo Darin no papel do pai que não sabe como lidar com a ambiguidade sexual de seu (sua) filho(a).
Shortbus narra experiências de jovens que se veem envolvidos em sexo, amor, política e questões existenciais. O filme, de 2006, tem trilha sonora de vanguarda de Yo La Tengo e é dirigido por John Cameron Mitchell. Intenso e com toques de humor, o filme é um caleidoscópio das possibilidades eróticas de um mundo em transição, onde a norma heterossexual não mais consegue impor limites a sujeitos que buscam reencontrar-se.
Já o belíssimo O Livro de Cabeceira, de 1996, dirigido por Peter Greenaway, conta a história de uma mulher que persegue o prazer que sentia quando, na infância, seu pai lhe pintava o rosto com saudações para comemorar seus aniversários. Neste filme, são memoráveis as cenas em que a protagonista tem seu corpo transformado em suporte para a escrita japonesa. As alianças entre paixão, transgressão, ciúmes e rispidez nos conduzem a labirintos visuais impressionantes.
Por fim, mas não menos importante, poderemos assistir a Desejo e Perigo, de Ang Lee, lançado em 2007, que nos mostra meandros da luta política e da atração sexual. Uma jovem chinesa é incumbida de lutar contra a ocupação japonesa. Para isso tem de atrair um colaborador do país opressor. Esta tarefa resulta em uma relação crivada de erotismo em que são evidenciadas as interconexões entre os negócios de Estado e os assuntos da do amor e do sexo.
Estes comentários pretendem ser um convite ao deleite visual e sonoro que estes filmes podem nos ofertar. Mas também são um canto de resistência e um grito de dor diante do desrespeito e da violência com que as vidas de muitas pessoas têm sido destruídas pela intolerância à diferença e às múltiplas possibilidades de prazer. Que a justiça erótica rime sempre com a alegria e a liberdade de gozo das pessoas adultas que se escolhem livre e reciprocamente como parceiros amorosos e sexuais.
Maria Luiza Rodrigues, Luiz Melo e Lisandro Nogueira são professores da UFG e curadores da mostra Sexo e Poder. Publicado em O POPULAR.
1 Comentário
Essa foto é perfeita.
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