Em Nascido para Matar (1987), o soldado Joker, ao tentar explicar por que usa um bottom com o símbolo da paz ao mesmo tempo que traz grafada em seu capacete a frase “Nascido para matar”, diz: “É algo sobre a dualidade do homem, senhor”. A fala do personagem de Matthew Modine revela um dos pontos centrais da visão de mundo de Stanley Kubrick: a noção de que a natureza humana é paradoxal em sua essência, constituída de traços polares. Assim como o seu personagem, os filmes do diretor, que estão sendo exibidos pelo Cine UFG até sexta-feira (confira programação acima), sempre falam da dualidade. Mas não só a dualidade do homem. Também a relação dual entre conceitos que regem o mundo em que vivemos e são simultaneamente complementares e opostos constitui matéria essencial de seu discurso fílmico.

A dualidade é a força-motriz do universo de Kubrick, ou seja, seu mundo ficcional, a realidade criada por ele, emerge de elementos contrários. Do mesmo modo, a estética do diretor conjuga estrutura técnica clássica e narrativa moderna. Ao fazer um cinema que é clássico em sua forma, mas contém características modernas, Kubrick alinha-se a diretores como Hitchcock, Orson Welles e Nicholas Ray, que fizeram um cinema autoral nos grandes estúdios de Hollywood.

Kubrick compõe seu universo em torno das intrincadas relações duais de polos que antes se complementam do que se contrapõem, em binômios como: ordem/caos, objetividade/subjetividade, racionalidade/irracionalidade, superfície/fundo. Esses elementos contraditórios, indissociáveis, constituem as duas faces de uma mesma moeda. Em Laranja Mecânica, de 1971, em um mundo organizado, civilizado, ascético, racional, eclode a violência gratuita e brutal, gerada no seio de uma sociedade condicionada para ser pacífica. O protagonista, Alex (Malcom Mcdowell), é o rapaz inteligente, apreciador de música clássica, que libera seus instintos mais primitivos matando e estuprando por diversão. O espectador, na medida em que condena Alex por seus atos horrendos, descobre-se imerso em seu mundo, de certa forma, identificado com ele, mesmo que a contragosto.
Subjetividade
Kubrick cria esse efeito da câmera subjetiva, em que vemos o mundo do personagem através de seus olhos, em que não há uma fronteira entre a sua subjetividade e o mundo exterior. Já em Lolita (1962), o pacato Humbert Humbert (James Mason), apaixonado pela ninfeta-título, desprende-se de sua racionalidade para dar lugar aos impulsos de sua mente atormentada, tornando-se progressivamente violento e descontrolado, em uma escalada que só poderia culminar em destruição, a sua própria e a daqueles que o cercam, processo semelhante ao que acontece com Jack Torrance, em O Iluminado; Redmond Barry, em Barry Lyndon; Gomer Pyle, em Nascido para Matar; Bill Hartford, em De Olhos Bem Fechados, ou HAL 9000, em 2001: uma Odisseia no Espaço.

Os personagens são meticulosamente construídos pelo diretor na narrativa e, à medida que esta se desenvolve, cria-se uma tensão psicológica que catalisa outros componentes da trama. Têm papel preponderante os tormentos da mente, que tanto engendram a destruição pessoal quanto propiciam a desestruturação de todos os códigos, por essência, racionais, que organizam a sociedade, ou seja, que regulam e permitem a convivência entre os homens.

Na mise-en-scène de Kubrick, a densidade psicológica dos personagens revela-se não apenas no que eles falam, mas no modo como se colocam na cena, na forma como habitam o espaço. Assim, o espaço é fundamental, uma vez que lá acontece a quebra do código de constituição/falsificação do real, que deságua no caos, na loucura e na destruição: a sala de guerra, a base aérea e o B-52, em Doutor Fantástico; as naves espaciais controladas por onipresentes computadores, em 2001: Uma Odisseia no Espaço; a cidade kitsch, pós-apocalíptica e ultraviolenta em Laranja Mecânica; os castelos nos quais os personagens, na composição dos quadros, encontram-se presos ao equilíbrio buscado pela pintura setecentista, em Barry Lyndon; os corredores labirínticos do Hotel Overlook, encarnações da mente de Jack Torrance, em O Iluminado; a ilha de treinamento militar em que o sargento Hartman humilha e insulta os recrutas em Nascido para Matar.

O tom acentuadamente irônico da narrativa kubrickiana aponta para as contradições contidas em um mundo incoerente e fadado ao fracasso. Suas personagens tentam encontrar na vida um sentido que, na realidade, não existe. No fim, qualquer tentativa de organização sucumbe à natureza humana e às suas sórdidas fraquezas.

Os filmes de Kubrick são trajetórias de declínio, de degradação, tanto do homem quanto das estruturas e instituições. Trajetórias que se encaminham para um desfecho inexoravelmente trágico, que se anuncia desde o começo. De certa forma, Kubrick era um “anti-Rousseau”, pois inverte a premissa de que o homem é essencialmente bom e a sociedade o corrompe. Para ele, a natureza humana é corrompida a priori, a sociedade apenas acompanha o seu “progresso”.

Especial para O Popular 31 de maio de 2011 (terça-feira)