segunda-feira, 25 de julho de 2011

Rio de Janeiro e São Paulo, confluências do Brasil



SÃO PAULO E RIO e ChiCo Buarque

Caetano Veloso


Vejo o Rio da perspectiva da Zona Norte: passei todo  o ano em que completei 14 (um ano crucial na vida de qualquer um) em Guadalupe.

Na época, o bairro não tinha nome. Não era um bairro. Era a “Fundação da Casa Popular”, criada pelo governo e colada a Deodoro. Eu ia de trem para a cidade, passando por Marechal, Oswaldo Cruz, Bento Ribeiro, Cascadura, Madureira, Riachuelo, Méier, Engenho de Dentro, Quintino (com aquele coretinho na praça em frente à estação), Encantado, Mangueira…

Não mencionei todos, nem na ordem certa, como fazia de cor quando era jovem.  Ou então de ônibus, passando por Irajá, por Parada de Lucas, Penha, Ramos… E a cidade era a Cinelândia, para ver filmes em sessão-passatempo ou grandes produções; era o Tabuleiro da Baiana, no Largo da Carioca; era principalmente a Praça Mauá, onde ficava a Rádio Nacional (lá eu vi Emilinha, Trio Irakitã, Ângela Maria, Cauby, João Dias, Dolores Duran, Marlene, Zezé Gonzaga, Neusa Maria, as orquestras de Radamés Gnatali e Lirio Panicalli – nos programas de Paulo Gracindo, César de Alencar e Manoel Barcelos. Às vezes no “Marlene, meu bem”, que era uma espécie de “I Love Lucy” feito pra rádio mas com cenário e tudo para quem estava no auditório).

A Zona Sul a gente alcançava via Jacarepaguá, onde ficava a casa de Dalva de Oliveira. Passávamos primeiro por Realengo e Bangu, tomávamos banho de mar no Recreio dos Bandeirantes e voltávamos por São Conrado, Leblon e Ipanema – parando no Arpoador – depois Copacabana, Botafogo, Flamengo, Glória e da cidade direto para a Avenida Brasil. Esse era o périplo que Carlos, meu primo policial na casa de quem morei nesse ano (1956: Vinícius e Tom lançavam “Orfeu da Conceição”), fazia.

Quando eu saía com Minha Inha (a prima que me trouxe para morar aqui, longe de meus pais e meus irmãos por um ano), ia a Niterói, tomar banho no Saco de São Francisco (era minha praia favorita e amo Niterói até hoje de todo o meu coração, inclusive com raiva das piadas que cariocas fazem a respeito da cidade).

Quando Bethânia veio fazer o Opinião, eu vim de irmão mais velho. Ela ficou em Botafogo, na casa de Rosinha Pena (que foi mulher de Glauber Rocha) mas eu fiquei no Méier: Minha Inha estava morando lá, casada com um português. Era um bairro que eu já amava desde os 13 anos: seu jardim à margem da estrada de ferro, o cine Imperator (enorme, luxuoso, confortável e popular), tudo. Enfim, quando voltei da Bahia em 66 para ficar, fiquei na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, quase esquina com Santa Clara. Depois fui para o Solar da Fossa, que era onde hoje é o Rio Sul, na boca do Túnel Novo.

Depois Sampa, Londres, Salavador de novo. Na volta para o Rio, morei no Leblon, Jardim Botânico, Ipanema e, agora, Leblon outra vez. Por causa do Afroreggae me liguei a Vigário Geral e lá voltei muitas bezes. Já fui em bailes funk na Mineira, no Alemão e em Cidade de Deus. Sendo que, até morrerem meus primos mais velhos (e, para minha maior tristeza, uma das mais jovens também, Tânia Maria, que foi promotora pública atuante contra grupos de extermínio, correndo corajosamente risco de vida) eu ia regularmente a Guadalupe, à mesma casa onde morei. Moreno me acompanhava e Zeca chegou a pegar a fase final. Tom é o único que não freqüentou. Em compensação, dos meus três filhos, é ele, por cuasa do futebol, quem mais vai à Zona Norte hoje: joga sempre lá, treina lá e seus maiores amigos são de lá.

Cheguei a Sampa com Bethânia em 65. Achamos que parecia uma cidade do interior. E supusemos que os passageiros dos ônibus fossem estrangeiros, por causa do sotaque italianado. O clima era muito provinciano. Não se viam namorados se beijando na boca na rua, como era comum em Paris, no Rio ou em Santo Amaro. Os cinemas da Ipiranga ostentavam cartazes gigantes pintados a mão e não permitiam que os homens entrassem sem paletó. As moças na rua paerciam tímidas e desarrumadas, com os cabelos oleosos. E as pessoas bacanas que fomos conhecendo tinham nostalgia do Rio, da Bahia, do Brasil.

As mulheres ricas elegantes que pintavam no teatro para ver Bethânia eram arrumadas demais, ninguém vinha de cara lavada, cabelo nos ombros e calças jeans. Eram peruas pintadas e cheias de jóias. Não foi fácil gostar de São Paulo. Mas me apaixonei pelo teatro de Augusto Boal (o “Zumbi” era uma maravilha) e pelo Oficina (“Os Pequenos Burgueses” era uma montagem que parecia européia, com uma atuação de Fausi Arap de fazer tremer).

Bethânia, Gal, Tom Zé, Pitti, Gil e este transblogeuiro que vos fala atuamos numa peça musical de Boal chamada “Arena Canta Bahia”, sem sucesso de público ou de crítica, mas de grande valor formal e técnico: Boal treinava nosso corpo, compunha imagens perfeitas com nossas figuras. Mas, logo que pude, me mandei para a Bahia.  Quando voltei a Sampa, depois de Copacabana e do Solar da Fossa, me apaixonei pela cidade. E, seguindo um comentário de Guilherme Araújo – carioca original - , passei a achar que o Rio não estava com nada.

Meu irmão Bob, que veio a Rio e São Paulo antes disso, desde sempre desprezou o Rio e elegeu Sampa. Mora lá desde os anos 60 e conhece tudo da cidade: não erra caminhos, sabe onde ficam os bairros, tudo. Nunca se sentiu bem no Rio: acha os cariocas agressivos em sua desinibição.

No período do tropicalismo, o Rio me parecia provinciano em seu metropolitanismo de país subdesenvolvido – e São Paulo com  peso internacional real, em seu provincianismo cosmopolita. Não era a metrópole do Brasil: era uma cidade do mundo. Eu via como certo que no futuro São Paulo pasaria a contar mais. Nunca mudei essa visão. E hoje as coisas são assim, não mais apenas parecem que serão assim. Todos os aspectos disso se impunham à minha sensibilidade: o fato de as pltéias paulistas serem a um tempo mais ingênuas e  mais informadas; o jeito a um tempo receptivo e exigente das pessoas com quem conversávamos; a distrubuição pouco brasileira das comunidades de imigrantes em “colônias” um tanto isoladas – tudo contrastava com as platéias-estrela do Rio, com as pessoas blasê e pouco rigorosas do Rio, com o amálgama brasileiríssimo das etnias e classes no Rio.

Quando Verdade Tropical saiu, Marcos Augusto Gonçalves, carioca com quem fiz amizade no Rio e que hoje é paulistano de adoção e tem alta função na Folha, queixou-se de uma quase ausência de São Paulo no livro. Ele sabia que a cidade fôra tão importante na formação do tropicalismo que, mesmo com todas as menções a ela, ele achava que o livro ficava-lhe em débito.

Eu detestei o número da Ilustrada (ou já existia o Mais?) dedicado ao meu livro. Mas nunca neguei que a observação de Marcos fosse fundada. Eu próprio acho que nem todas as palavras afetivas ditas sobre minha primeira casa (foi em São Paulo que primeiro tive apartamento para morar), sobre Boal e o Oficina, sobre os poetas concretos, sobre minhas farras com Chico e Toquinho (e o sex-appeal paulistaníssimo de Toquinho) põem em proporção o peso que São Paulo deveria ter naquele livro.

“Zii e zie”  é um disco todo do Rio. Seu som, seus temas, seu clima, tudo tem a ver com o fato de meus filhos terem crescido aqui – e com minha adolescência em Guadalupe. Mas sonho em lançá-lo em Sampa. O italiano do título tem vem muito da saudade de São Paulo, do prazer em ouvir e ler paulistas dizendo “tios” e “tias” (ou mesmo “tiozinhos”) para se referirem aos adultos.  A presença de São Paulo em nossa mente é, hoje, a realização do que Guilherme intuíra em 66 e que me pareceu óbvio já em 67. Gil, sempre Gil, sabendo das coisas essenciais antes, tinha uma decisão pró- São Paulo mais bem desenvolvida do que a minha. Mas Gil não fala dessas coisas assim. Quem afinal compôs “Sampa” fui eu. Sinto mais do que orgulho.

Hoje São Paulo nem feia mais parece. São tantas coisas grandes e belas que a força da grana garante, é tão nítido o gume São Paulo na entrada moderna do Brasil na História – Museu da Língua Portuguesa, Racionais MCs, Cidade Limpa, Augusta sendo um Largo da Ordem-Pelourinho-Lapa mais antenado com o mundo, Sala São Paulo, OSESP – que hoje sentimos sua liderança e sua centralidade sem precisar pensar.
Demorei a conhecer paulistas que se sentissem superiores ao Brasil.  Primeiro achei só os arrogantes e alienados. Só depois vi os realistas. Zé Miguel Wisnik nota que paulistas se ressentem de um deficit de brasilidade e também de uma sensação de superioridade em relação ao país. Muitos oscilam entre esses dois polos.

Os queridos e úteis intelectuais da USP sempre parece que querem salvar o Brasil de si mesmo – ou simplesmente, num universalimo marxista regional, descrêem de tudo o que for nacional. Fernando Henrique falando dos soldados brasileiros que “não sabem marchar – eles sambam” é uma caricatura disso. O livro de Marilena contra a celebração do Descobrimento é uma versão sisuda e errada do mesmo sentimento. Mas ponhamos essas desmunhecadas na conta da geração: esses ecoam ainda modos de sentir do paulista culto que leu muito nos anos 50 e escreveu muito dos 60 em diante. Porque Oswald, Haroldo de Campos e Mário de Andrade não eram assim. E o jovens pós- Zé Celso e pós Rita Lee muito menos.

Chico Buarque para mim é São Paulo. Um grande paulista da linhagem dos que sentiam o deficit de brasilidade de forma dolorosa. E  se tornou o mais perfeito brasileiro-carioca simbólico de todos os tempos. Saber que o talvez maior compositor popular de minha geração é um paulista diz tudo sobre a intensidade da energia de São Paulo. E diz mais ainda sobre os caminhos misteriosos da nossa tomada de cosnciência desse fato e de suas projeções. É só para isso que importa o quanto Chico desaprovará esta interpretação.

Quanto ao “talvez” que escrevi antes de “o maior”, ele se deve a eu ter pensado em Jorge Ben e em Paulinho da Viola: Gil e eu não me parece que estejamos no páreo. Somos relevantes pelo conjunto da obra crítica, política, teórica, comportamental que acompanha o trabalho de composição. Mas Chico é o cara da canção. E ele é paulista
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