segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Os filmes que enganam

Os filmes que enganam (foto) - para pensar a grave crise (acessar texto) econômica atual.

Lisandro Nogueira

No segundo semestre de 2006, fui duramente criticado por não aderir ao filme O segredo (The Secret , 2006). Recebi muitos e-mails duros de telespectadores da TV Anhangüera (faço comentários de cinema na primeira edição do Telejornal às sextas-feiras) e alguns alunos me reprovaram, de forma razoavelmente elegante.

Só o resumo do filme já mostra seu grau de pretensão: "Ao longo da existência da humanidade, um grande segredo foi protegido a ferro e fogo. Homens e mulheres extraordinários o descobriram e não só alcançaram feitos incríveis como também mudaram o curso de nossa história. Platão, Da Vinci, Galileu, Thomas Edison, Beethoven, Napoleão, Abraham Lincoln e Einstein foram alguns dos grandes homens que controlavam a força desse mistério. E agora, após milhares de anos, o Segredo será revelado para todo o mundo!"
O filme fez um sucesso estupendo. Sua fórmula de convencimento é simples e eficaz: você pode quase tudo. Não há limites para a “lei da atração”. Você sai da sessão empolgado e com um ligeiro travo de culpa por não conhecer ainda lei tão magnífica. Afinal, querer é poder.
Penso que esse filme é a síntese de todas as ondas do "pensamento positivo que varreram o Ocidente na última década. Juntamente com as "correntes de dinheiro"(texto), esse filme representa uma ideologia maldosa que corrompe a ética e ilude milhões de pessoas com falsas promessas. Essas “correntes” de otimismo leviano levam indivíduos sem escrúpulos a corromper pessoas crédulas. A bolha financeira que está a detonar a economia mundial (texto) é sustentada, em seus pilares, por esse tipo de pensamento.
O cinema, nos últimos anos, foi dominado por um melodrama cínico e agressivo ou por um melodrama demasiadamente ingênuo. Os filmes trágicos estão marginalizados, dando lugar a cientificismos estranhos (Quem somos nós?), bolhas cômicas de ilusão (O segredo), regressões infantis (Forrest Gump) ou a filmes maldososos e estúpidos como A.I. Inteligência Artificial, de Steven Spielberg.
O bom cinema faz perguntas, faz pensar e lança dúvidas: não fornece receitas. Para pensar a crise seriamente e usufuir esteticamente lembro de filmes como : Onde os fracos não tem vez, O homem que não estava lá (Irmãos Coen), Código desconhecido (Code Inconnu – 2000), com Juliette Binoche, Linha de passe e o sempre atual e maravilhoso Stroszek (foto), de Werner Herzong (1977).


Todos disponíveis em DVD na Cara Vídeo (rua 10 - centro: 3223 6622).

36 Comentários

Marco A. Vigario disse...

Bom, no meu caso específico, AI me faz pensar sim. Nunca botaria ele numa lista que tem O Segredo.

Lisandro Nogueira disse...

Quais outros filmes, caro M. Aurélio que te faz pensar a crise econômica atual?

Marco A. Vigario disse...

Na verdade essa crise não tem me despertado a lembrança de muitos filmes. Talvez Sangue Negro. De qualquer forma só queria esclarecer que AI me faz pensar sim, mas não nessa crise. Me faz pensar em outras coisas.

Anônimo disse...

Caro Lisandro
nao seja presa do culto a malhacao do Spielberg. Inteligencia Artificial nao é um filme bobo. trata das possiveis viradas e finais dos dramas que estamos começando a construir.
joao fantini

Lisandro Nogueira disse...

João e M. Aurélio,
(João) Não entendi: "possiveis viradas e finais dos dramas q estamos começando a construir". Spielberg e George Lucas revitalizaram o cinema de hollywoody, no final dos anos 70, com Tubarão e Guerra nas EStrelas. Atualizaram a velha estrutura clássica criada por Griffith (criador desse cinema: protestante, branco, conservador)com as novas tecnologias da imagem e com a mistura de gêneros pré-existentes. Um pastiche que deu certo e encanta milhões. São inteligentes e competentes. Mas penso que são filmes que contribuíram decisivamente para a "infantilização dos adultos". Gosto da "Lista" e de "Munique" (a cena do judeu abandonado pelo governo de Israel em N. York é muito bonita).

Anônimo disse...

Lisandrão, precisamos separar as coisas, creio. Há a crise econômica e há seu espaço de ressonância. Explico: a crise é, em sua natureza, financeira. Bancos quebrando porque não há dinheiro sobrando; a crise se espraia, também, para outros campos da nossa vida, como é o caso do pensamento positivo e afins. O cinema é um bom instrumento para compreender estes campos.

Você está certíssimo quando ataca o pensamento positivo elevado à categoria de epistemologia e filosofia moral do presente. Tenho pena de quem cai nesta armadilha retórica. Mas esta predisposição não explica os movimento econômicos que provocaram a crise. Alan Greenspan, ex-capo do FED não parece ser o tipo de pessoa que se olha no espelho toda manhã e diz: "hoje será um bom dia para a América". Só concebo o Bush fazendo isso, hehehe. Ademais, a relação entre intimidade e sociedade (economia inclusa) já foi muito bem explorada pelo Giddens e pelo pessoal dos Culture Studies.

Dos filmes que você acusou de surfar nesta onda de "positivismo" discordo de dois: A.I. e Forrest Gump. Acho que Forrest Gump tem uma linha narrativa atravessada pela ironia no sentido de Thomas Mann ("o amor que tudo o que é grande - genial, extraordinário - tem pelo que é pequeno - comum, ingênuo"). Sabemos que o personagem e as situações são ridículas e mesmo assim não deixamos de reconhecer sua autenticidade. Já A.I. é menos interessante, mas discute, como disse o João Fantini, as possibilidades de nosso progresso técnico e, mais significativamente, nosso desenvolvimento humano. Não são, obviamente, grandes construções cinematográficas, não alcançam o patamar de obras-de-arte. Mas tematizam questões importantes.

Lisandro Nogueira disse...

Daniel,
Não há um "positivismo" bobo em AI - a celebração da tecnologia? Thomas Mann em Forrest? Não sei!! Você está exagerando, não? Forrest Gump atualiza a crença no "positivo ingênuo", na barca que pode correr no rio sem problemas porque o remador não dúvida de nada. O personagem não vê a história. O Forrest lembra muito aqueles q. vão agora pagar a conta do calote. Estou enganado?

Lisandro Nogueira disse...

João e amigos,
Você não comentou "Stroszek"? Lembra o tanto que esse filme nos marcou nas célebres sessões do
Cineclube?
ps: para compeender Forrest Gump vale a pena ler "Parábolas cristãs no século da imagem". In: O olhar e a cena.

Anônimo disse...

Um filme para pensar a crise: "O Sonho de Cassandra", do Woody Allen.

Diretor que, aliás, sempre zombou das saídas "filosóficas" fáceis que iludem os capitalistas de espírito.

Dele, lembro também de "O Dorminhoco": o avesso da celebração da tecnologia, com humor.

Victor Hugo disse...

O Lisandro falou de um anteriormente, que também é bom, o "Casa de areia e névoa". Uma dúvida: pq AI é maldoso?

Outra coisa: o site GI noticiou que a revista britânica Empire soltou uma lista com os 500 melhores filmes da história. A lista, com muitas superproduções entre os 50 primeiros colocados, bota lenha naquela discussão de cinema de arte x cinema de entretenimento.

Victor Hugo disse...

Essa é a lista dos 50 primeiros:

1. "O podereso chefão", de Francis Ford Coppola (1972)

2. "Indiana Jones Os caçadores da arca perdida", de Steven Spielberg (1981)

3. "Star Wars: O império contra-ataca", de Irvin Kershner (1980)

4. "Um sonho de liberdade", de Frank Darabont (1994)

5. "Tubarão", de Steven Spielberg (1975)

6. "Os bons companheiros", de Martin Scorsese (1990)

7. "Apocalipse Now", de Francis Ford Coppola (1979)

8. "Cantando na chuva", de Stanley Donen e Gene Kelly (1952)

9. "Pulp Fiction", de Quentin Tarantino (1994)

10. "Clube da luta", de David Fincher (1999)

11. "Touro indomável", de Martin Scorsese (1980)

12. "Se meu apartamento falasse", de Billy Wilder (1960)

13. "Chinatown", de Roman Polanski (1974)

14. "Era uma vez no Oeste", de Sergio Leone (1968)

15. "O cavaleiro das trevas", de Christopher Nolan (2007)

16. "2001: Uma odisséia no espaço", Stanley Kubrick (1968)

17. "Taxi Driver", de Martin Scorsese (1976)

18. "Casablanca", de Michael Curtiz (1942)

19. "O poderoso chefão - Parte II", de Francis Ford Coppola (1974)

20. "Blade Runner", de Ridley Scott (1982)

21. "O terceiro homem", de Carol Reed (1949)

22. "Star Wars: Uma nova esperança", de George Lucas (1977)

23. "De volta para o futuro", de Robert Zemeckis (1985)

24. "O senhor dos anéis: A sociedade do anel", Peter Jackson (2001)

25. "Três homens em conflito", de Sergio Leone (1967)

26. "Dr. Fantástico", Stanley Kubrick (1964)

27. "Quanto mais quente melhor", de Billy Wilder (1959)

28. "Cidadão Kane", de Orson Welles (1941)

29. "Duro de matar", de John McTiernan (1988)

30. "Aliens - O resgate", de James Cameron (1986)

31. "E o vento levou", de Victor Fleming, George Cukor e Sam Wood (1939)

32. "Butch Cassidy", de George Roy Hill (1969)

33. "Alien - O oitavo passageiro", de Ridley Scott (1979)

34. "O senhor dos anéis: O retorno do rei", de Peter Jackson (2003)

35. "Exterminador do futuro 2", de James Cameron (1991)

36. "Andrei Rublev", de Andrei Tarkovsky (1969)

37. "Laranja mecânica", de Stanley Kubrick (1971)

38. "Fogo contra fogo", de Michael Mann (1995)

39. "Matrix", dos irmãos Wachowski (1999)

40. "Um corpo que cai", de Alfred Hitchcock (1958)

41. "Os incompreendidos", de François Truffaut (1959)

42. "As oito vítimas", de Robert Hamer (1949)

43. "O grande Lebowski", dos irmãos Coen (1998)

44. "A lista de Schindler", de Steven Spielberg (1993)

45. "Psicose", de Alfred Hitchcock (1960)

46. "Sindicato dos ladrões", de Elia Kazan (1954)

47. "E.T. - O extraterrestre", de Steven Spielberg (1982)

48. "This Is Spinal Tap", de Rob Reiner (1984)

49. "Evil Dead 2", de Sam Raimi (1987)

50. "Os sete samurais", de Akira Kurosawa (1954)

A lista completa pode ser encontrada no seguinte endereço:

http://www.empireonline.com/500/

Proponho um assunto: quais destes filmes são verdadeiros disparates entre os 50 primeiros?

Anônimo disse...

Eu adoraria discutir Forrest Gump. Podemos nos aproximar do filme de vários modos. Meu modo de aproximação enfatiza dois aspectos. A estrutura narrativa e a construção do personagem.

Em termos narrativos Forrest Gump pertence à vertente do "realismo fantástico" e, por isso, alguns episódios assumem um aspecto de conto fantástico, no sentido do Propp. Embora Zemeckis não seja lá um Terry Gilian (Munchausen) os elementos fantásticos obedecem à mesma lógica: ressaltar nossa capacidade de simbolizar o real e, ao fazê-lo, escancarar a própria realidade diante de nós. Neste sentido, Forrest, a personagem, é um soldado perdido do exército de Brancaleone. É a esta família cinematográfica que o filme pertence. Junto dele estão "Edward Mãos de Tesoura", "Brazil, o filme", "Big Fish", "Leolo", "Bagdá Café", "A vida é bela". É uma homenagem à nossa capacidade de contar histórias, construir narrativas. É um líbelo em favor do homo simbolicum de Cassirer.

A personagem também é muito bem construida. Forrest é abraçado pelo destino em sua ingenuidade e nos espanta que tudo na vida lhe saia bem. Ele é incapaz de perceber o todo. Sua ação é sempre localizada e sua única sabedoria é ser fiel a si mesmo. Muita gente implicou com a superficialidade existencial da personagem. Estão corretos. Ele é superficial. Mas esta superficialidade é necessária para ressaltar o fato de que a personagem só consegue ver a si mesma como protagonista das próprias histórias. Nós também possuímos esta ingenuidade, por assim dizer. Ela é universal. Somos todos "heróis" de nossa própria narrativa ou estamos lutando para nos percebermos deste modo. Às vezes, somos anti-heróis. Forrest não é um analítico, ele não procura compreender-se pela racionalidade. Exceto naquela cena em que ele indaga à namorada se seu filho tem alguma incapacidade cognitiva semelhante à dele. Ali ele se vê como realmente é. Ali ele duvida de si e tem medo do futuro. Por um momento, numa abertura belamente humana. Depois falo do AI.

Anônimo disse...

pasmoessencial,

Gostei!

Forrest possivelmente é o que irá pagar o calote. E daí? Todos vão.
Até os que pensam que não vão pagar também vão, estes pagam dobrado.

No aguardo do AI.
O que se quer dizer com celebração da tecnologia?

Luiz Alfredo disse...

Caro Lisandro e amigos
Peço licença para adentrar esta discussão, e concordar totalmente com o pasmoessencial. Alias meu caro, belissimo texto.

Quanto ao AI, alio-me à sua corrente defensora. Não é um puta filme, mas me fez também questionar. Não creio que faça uma celebração da tecnologia, acho que "é o oposto".

Certas cenas são assustadoras e contrárias à tese da celebração (como o circulo de destruição ). Mais adiante, o filme nos retrata um futuro nada alegre ou festivo, mas sim bastante miserável. Diferente do "Eu robô" por
exemplo, que a ameaça é a revolta das máquinas. Se não houvesse rebelião, elas seriam plenamente denfesáveis (desculpem a comparação com este filmeco, mas é o que me veio a cabeça). Em AI, há muita questões que são propostas e que são reflexos intrinsecos a essa "desmedida tecnologia" (robôs sexuais, drogas neurais, "especismo" etc)

Embora o molequinho lá seja lindo e cativante, em muitos momentos esta sua aura sedutora se desfaz, ele é uma máquina, dá pane, etc...

Sou um neófito nesta seara, mas a meu ver o filme deveria terminar com a cena em que o guri não alcança a fada e se apaga na cidade submersa. Não sei se isso pode ser utilizado para embasar uma análise, mas ainda espero que um dia eles relancem o filme com uma versão à altura de Kubrick.

Marco A. Vigario disse...

Gosto de AI porque aprendi a ver nele, mais do que um debate sobre o perigo da tecnologia, uma metáfora da infância. Acho que é isso que o João quer dizer com "possíveis viradas e finais dos dramas que estamos começando a construir".

Anônimo disse...

I.A. é sobre a impossibilidade de apreender o humano. Se isto é pouco entao nao sei mais o que é. sem acertar minimamente sobre este tema nao da mais pra discutir nem cinema.
Se estiver em duvida sobre aimportancia dele, na semana que vem começa um seminario em sp, rio e brasilia chamado Mutações - a condição humana: palestras de Slavoj Zizek, Maria Rita Kehl, ...
quem puder va a brasilia pois aqui em sp, lotado.
joao fantini

Lisandro Nogueira disse...

João,
Apreender o humano é uma questão séria e fundamental. Mas existem obras e obras. Você pode apreender o humano com filmes ou livros ou outras obras de mais valia estética. É bom discutir o humano: mas sem considerar um filme comum como um canal assim tão privilegiado. Existem outras obras no cinema superiores esteticamente (ao IA) que podem contribuir para compreender o humano em outro patamar. Isso não torna sem validade debater o IA. Mas o considero um filme "menor". Os psicanalistas poderiam se ocupar de filmes mais consistentes. Outra coisa: envia a programação completa desse evento para postarmos no blog.

Lisandro Nogueira disse...

João e Daniel e Alfredo,
Outra coisa: nenhum comentário sobre Stroszek? Me impressiona tb. a ausência de debates sobre filmes não tão antigos como ele. Ou filmes dos irmãos Coen ou outros. Volto mais tarde ao Forrest. Bom debate!!! Estamos bem. Isso é bom. Troca de idéias.

Anônimo disse...

A.I. é um híbrido. Nasceu da colaboração entre o Spilberg e o Kubric. Podemos, portanto, vê-lo pelo lado da cinematografia de um ou de outro, mas é difícil ver ambos os lados ao mesmo tempo (assim como na clássica figura do coelho e de pato - Pernalonga e Patolino? hehehe). Esse é, ao meu ver, o maior problema do filme. Falta certa unidade de perspectiva e a condução é vacilante.

Spilberg é um diretor simples, direto, competente. Todos os seus filmes são conduzido de forma bastante rígida, priorizando o impacto no telespectador (e não uma concepção estética própria) e o didatismo narrativo. Por conta disso algumas passagens de AI potencialmente sombrias perdem seu impacto e, até, seu sentido. A sequência da feira de robôs deveria demonstrar, ao mesmo tempo, a irracionalidade anti-científica e a potencial "humanidade" das máquinas. Na mão do Kubrick teria sido, acredito, um grande ritual pagão de sacrifício e morte, com maior ênfase no subtexto religioso. Com Spilberg, tornou-se uma espécie de show, do tipo que acontece em autódromos antes das corridas. Ficou brega.

O que Spilberg trouxe para o filme foi, creio eu, a linearidade da narrativa e o clima de conto de fadas, consubstanciado no final feliz.

Neste sentido concordo com o João Fantini quando ele fala da impossibilidade de entender o humano - coisa que já está contida na fábula do pinóquio, o garoto cara-de-pau. Se a história do pinóquio tem algo a nos ensinar, é o fato de que nossa humanidade não é um atributo nato, uma característica congênita. É uma construção socio-cultural consubstanciada, principalmente, nas nossas ações e no diálogo que somos capazes de entabular com o outro. A máquina, condenada à obedecer sua programação, não se constrói nas relações com outras máquinas. Daí a relevância da relação mãe-filho para o andróide. É um tema recorrente na ficção científica (veja Blade Runner). A diferença aqui é que AI é uma fábula e não um noir.

Anônimo disse...

Forrest Gump é como a personagem de Tim Robbins em "Guerra dos Mundos": um norte-americano médio que, em vista de uma limitação de autoconsciência, está dispensado de responder racionalmente pelos seus atos e por suas idéias. O que é muito conveniente, por sinal.

Isso não é raro em Spielberg. Já em "Contatos Imediatos do Terceiro Grau" podemos perceber que o diretor impõe essa séria restrição quando se aproxima mais criticamente da cultura norte-americana. Retirando a lucidez das personagens, a representação inibe o choque com o seu objeto, e acaba encontrando um meio para aliviar a crítica, sem jamais ferir o realismo.

Desse modo, se “Forrest Gump” tem momentos pontuais de fabulação, é, no todo, uma obra realista dramática das mais convencionais (inclusive recusando-se a estilizar os cenários fora do padrão realista, como faz o fabuloso “Peixe Grande”). Ao mesmo tempo, “Forrest” passa longe de ser uma alegoria, localizando-se em um espaço-tempo factual, de modo que a história do povo americano confunde-se com a história pessoal do protagonista.

Isso prejudica o filme, a meu ver, porque Forrest, potencialmente, é uma grande personagem alegórica. A sua infantilidade é a infantilidade da própria cultura que o determina por completo, sem que ele perceba. Essa é a condição infantil: ser um outro, depender de um outro, e não ser ninguém por si mesmo. Não menos, essa é também a condição dos que vivem em uma sociedade de massas, que pode funcionar perfeitamente mesmo quando os seus membros são meras partes insossas de um sistema, ou seja, mesmo quando não existem indivíduos capazes de inaugurar novas relações sociais e novas formas de vida.

A individualidade se tornou uma construção exterior, e já não apresenta sinais de autenticidade. Se Forrest conseguiu tudo o que qualquer um pode desejar (ser campeão de esporte, herói de guerra, marido da mulher amada, etc), fez pouco mais que obedecer as ordens ou as sugestões fortuitas de alguém. Precisamente a força dessa caracterização é algo que encanta muito aqueles que não questionam o capitalismo, isto é, a maioria de nós.

Por trás da sua oratória admirável, Forrest é um grande imbecil. Mas um imbecil que ganhou a vida, e disso o espectador gosta bastante. Se não houvesse um Forrest vitorioso, mas somente um ser humano de QI abaixo da média, o filme não funcionaria, já que exigiria do espectador apenas a piedade, sem oferecer a identificação fundada no desejo de sucesso que mobiliza cada um de nós. (Eis uma ponte possível com o “pensamento positivo” de filmes toscos como “O Segredo”.)

Logo, a falta de lucidez das personagens de Spielberg não viabiliza a crítica. Pelo contrário, ela é estratégica e impede que o filme problematize radicalmente o seu tema. Termina por alimentar o objeto da suposta crítica. No caso de “Forrest Gump”, a ameaça de crítica à sociedade norte-americana é barrada pela estrutura melodramática, e acaba se perdendo nas entrelinhas, sufocada pela forma.

Spielberg é como uma criança no complexo de Édipo. Quer matar o pai, mas, ao mesmo tempo, admira-o e defende-o ardentemente.

Não comento IA, porque nunca revi o filme, desde a estréia. E já faz muito tempo...

Franco Neto disse...

Olá , professor Lisandro,


Me parece extremamente adequada a idéia de se tentar entender a realidade mediante a apreciação de filmes. E estou me contendo quando digo apenas “adequada”. André Bazin, mais equilibrado e de maneira muito melhor, escreveu que os filmes são obras de arte e que a análise fílmica deve fazer demorar ao máximo o arrebatamento provocado por estas mesmas obras em nossa inteligência, sensibilidade. Claro, que temos incutida aí, a tese de que o cinema produz imagens e realidades carregadas de um conhecimento sobre a própria condição humana.
Mas, seguramente, há limites para a interpretação que podemos fazer. Humberto Eco trata deste mesmo assunto em um livro* que discute a relação entre o que ele chama de leitor ideal e leitor empírico. Eco fala de livros, mas não seria um pecado mortal importar a reflexão para o cinema, qual seja, o que nós expectadores de cinema podemos depreender do que assistimos? Até onde podemos ir? Pois bem, filmes como O Segredo, Quem somos nós? trazem, como você bem observou, uma espécie de engodo perigoso que tenta nos convencer de nossa vocação inconteste para a felicidade e o final feliz. Tudo vai dar certo, evidentemente se o sujeito “magnetizar” seus projetos ou se perceber que seu pensamento possui propriedades quânticas, portanto físicas, que podem interferir na realidade. De fato, um embuste reprovável e alienante. Mas é preciso tomar cuidado, penso, com o que depreendemos de alguns filmes. AI -Inteligência Artificial não é um panfleto que festeja a tecnologia. Acredito que o filme não deve ser marcado com o estigma “estúpido” ou “bobo”, só porque faz uso de efeitos especiais, não está lotado na lista de dramas e, principalmente, porque foi dirigido por Spielberg. A lógica por trás de AI é outra, substancialmente diferente. O roteiro foi desenvolvido tendo como base o conto Super-Toys Last All Summer Long de Brian Aldiss. Aldiss nos diz - com ironia e ceticismo, ao narrar a história de um menino, um robô, que deseja se tornar real para conseguir o amor materno - que o garoto artificial foi capaz de amar incondicionalmente a mãe, amor que não encontrou correspondência. É uma provocação, quase uma pergunta: somente o que criamos, um ser artificial, pode realmente ter sentimentos genuínos? Livres de interesse ou preconceito? A despeito do diretor ou de, óbvias, pretensões comerciais o filme consegue comunicar, em alguns momentos, a perplexidade de Aldiss, sua desconfiança - e não entusiasmo - ante a humanidade e suas realizações tecnológicas. Me parece, inclusive, difícil acreditar que Stanley Kubrick se interessasse por este conto - o filme era um projeto deste diretor que queria Spielberg no comando da fita - porque a narrativa poderia render apenas uma história ingênua sobre robôs e efeitos especiais.
Acredito, professor, que nosso olhar domesticado caminha em duas vias. Munidos de nossas leituras e preconceitos - como você lucidamente declarou, neste blog, quando de seu comentário sobre Cinema de Arte X Entretenimento, que foi influenciado pelas “modas autorais” - prejulgamos um filme por sua filiação, também subjetiva, à esta ou àquela modalidade de produção cinematográfica. É certo que existem obras de arte esteticamente mais sofisticadas, mas me incomoda essa predileção antecipada, pelos “grandes temas”. Muitas vezes isso nos presta ao engano, esquecemos o filme e ficamos com a militância.


Franco Neto.

*o livro é “Os Limites da Interpretação”.

Lisandro Nogueira disse...

Caro Franco,
Aceito com elevada estima a crítica pela suposta "militância". Mas não é o caso. Realizo há longos anos a análise de filmes de hollywood. Tenho o maior respeito. Você como meu aluno sabe como aprecio filmes americanos bons. Entretanto, fico a pensar: fiz uma lista de muitos filmes. Alguns que considero bons e outros, não. Mas é justamente um filme "menor", inclusive na filmografia do cineasta,que chamou mais a atenção - além da defesa veemente. Reporto tudo isso ao "Olhar domesticado" (embutido em todos nós: é uma questão cultural). É um problema tb. de política cultural. A cultura cinematográfica não consegue se enraizar para que possamos buscar outros filmes como referência. Isso é ruim para todos nós. Aí sim, nesse aspecto sou militante do cinema, pois há mais de vinte anos organizamos debates, mostras, aulas e conferências na tentativa de ampliar nosso olhar para além da domesticação. Spilberg é bom. Mas Glauber Rocha, Bergman e os irmãos Coen são bem melhores. A propósito, a cena da Galinha no filme Stroszek e os instantes finas no parque de diversões valem a pena.

Marco A. Vigario disse...

Vamos lembrar apenas que Forrest Gump é um filme do Robert Zemeckis, não do Spielberg.
E, Lisandro, acho que o debate caminhou para o lado de AI porque houve uma polêmica em relação à sua afirmação sobre ele. Talvez Stroszek não tenha entrado na discussão porque todos concordem com o seu valor (entre os que viram) - não por terem o "olhar domesticado" (se é que isso existe).

Lisandro Nogueira disse...

Sim, Marco Aurélio, o "olhar domesticado" existe. É uma questão cultural seríssima. Temos que fazer juízos estéticos, hierarquizar valores estéticos. Por outro lado, temos o gosto pessoal. Gosto esse formado por inúmeros fatores culturais, educacionais, etc. O problema não é ter o "olhar domesticado"(culturalmente todos nós somos formados por ele). O problema existe quando não procuramos ir além desse olhar. O que não é um problema para todos que estão debatendo no blog. ps: uma pancadinha no Forrest e no IA deu pano para manga. Vamos continuar...belo diálogo intelectual.

Anônimo disse...

Marco: É verdade! Eu escrevi o meu comentário de maneira que o Spielberg acabou parecendo ser o diretor de "Forrest Gump". Mas é preciso separar. A observação ficaria assim: essa atribuição de uma, digamos, "inconsistência mental" às personagens, é algo que o Spielberg explora em filmes como "Contatos Imediatos" e "Guerra dos mundos". O mesmo se dá em "Forrest Gump".

O que me chama a atenção é como isso interfere na possibilidade de uma crítica ao american way of life, que atravessa esses filmes, tocando em temas como o belicismo e o orgulho americanos.

"Contatos Imediatos", que é uma ficção científica que tematiza justamente o way of life, parece sugerir que, apesar de questionável, este modo de vida é o ponto alto da civilização terrestre, selecionando os "eleitos" para, digamos, "subir de nível".

Há coisas interessantes que podem ser pensadas a partir daqui sobre a construção da imagem dos americanos pelos filmes, numa relação com o "Forrest".

Franco Neto disse...

Olá novamente, professor,

Tem toda razão e cineastas como os Irmãos Coen, Bergman, Antonioni, Glauber Rocha são infinitamente mais talentosos. Bergman e Antonioni, são mais que isso, são geniais. Não quero e nem seria possível comparar Spielberg a qualquer deles. Não foi o que fiz, veja, por favor, novamente meu comentário. Eu dizia que o filme AI consegue, embora não seja uma realização estética relevante, carregar a idéia que anima o conto de Aldiss. Ou seja, o questionamento sobre o humano, nossas miseráveis vilanias. De fato é um filme comercial, mas se por um lado não aprofunda ou avança criativamente a tese do conto, tampouco mata seu sentido. A provocação de Aldiss é fabulosa: somos realmente capazes de sentimentos genuínos ou apenas emprestamos nomes bonitos às nossas conveniências? Penso que perdemos o conteúdo se, antecipadamente, “viramos os olhos” com enfado para os filmes que não são considerados sérios. Se pensamos apenas na forma. Tentava destacar também, professor, essa dificuldade. No livro A televisão levada a sério, Arlindo Machado escreve no prefácio “De fato, não soa muito inteligente dizer-se apaixonado pela televisão. Se a confissão de amor pela literatura ou por quaisquer outras formas sofisticadas de arte funciona como uma demonstração de educação, refinamento e elevação do espírito, a paixão pela televisão é, em geral, interpretada como sintoma de ignorância, quando não de desequilíbrio mental”. É mais ou menos o que ocorre se alguém disser, em voz alta, que existe algo de instigante num filme do Spielberg. Entende? Isso não significa que esta é minha referência. Que é este o cinema que “defendo”. Apenas discordei da avaliação de que AI é meramente estúpido, infantil.

Anônimo disse...

AI é um filme para poucos. Lobato provavelmente adoraria.
Há poouco falávamos de cinema de entretenimento e arte, AI não é nenhum dos dois, é aquele meio termo sonso, fosco, estéril... Vale pelas entrelinhas, mas as entrelinhas são para poucos.
Genial, genial mesmo, hoje no cinema; é Linha de Passe.

Victor Hugo disse...

"Penso que perdemos o conteúdo se, antecipadamente, “viramos os olhos” com enfado para os filmes que não são considerados sérios."

Caro amigo Franco,

você está partindo da premissa, muitas vezes correta, de que quem julga como 'bobo' o filme AI o julga assim pq é um filme do Spielberg. Eu não poderia falar profundamente sobre o filme, pois o vi há algum tempo e lembro de poucas coisas. Mas posso afirmar, seguramente, que não é um dos meus filmes preferidos. Por exemplo, Spielberg acertou muito mais a mão em Munique, um belo filme.

Ao criticar uma premissa de que vira-se os olhos para os filmes que não são sérios, quem vira os olhos? A meu ver, vc também cai em um preconceito, o de achar que todos os julgamentos negativos e que batem pesado no filme são, na ampla maioria, puro preconceito. O ranço militante ao qual se refere, é justo; apesar de ser irritante, ele não deve ser posto como algo totalizante.

Anônimo disse...

I.A. pode ser um bom filme para discutir seu conteúdo - e, assim mesmo, para discutir "a partir do filme". Como cinema, considero um lixo.

Lisandro Nogueira disse...

Caros amigos:
O cinema é fundamental como instrumento para discutir a sociedade (política, comportamento, etc). Os filmes são usados (isso é muito bom!!!) para discutir e alavancar inúmeros temas. Tento fazer isso na TV: comento filmes q. tem uma FORMA limitada mas q. podem alavancar o debate de temas. Mas sempre penso q. o debate pode ser ainda melhor qdo. a FORMA é levando em alta consideração. Isto porque, através dela você pode discutir melhor o conteúdo. O caso clássico é Costa Gravas. Seu cinema "político" é importante mas esbarra na forma conservadora. É um cinema datado (além do próprio Costa ser "datado" - foi ele quem deu o prêmio para o terrível Tropa de Elite, em Berlim) q. hoje tem importância como "memória relativa". Observem!: os filmes "que ficam" são aqueles q. ousam na forma. Penso ser fundamental debater os filmes convencionais. Porém, lembrando sempre daqueles que ousam e levam o cinema para espaço das grandes artes.

Anônimo disse...

só para dar mais uma pitada, Forrest atualiza o comentrio lacaniano,ºOs não tolos erram...º, i.e., quando o sujeito acha que já ganhou, ele já perdeu e não percebeu. é preciso cultivar uma certa tolice para continuar vivendo.

I.A. comenta a afirmação de Virillio="toda vez que criamos uma novar tecnologia criamos uma nova forma de problema a resolver". a questao entao nao é se devemos desenvolver tecnologias ou nao, mas em que tipo de problemas vamos projetar para dar algum sentido a vida.
abcs
fantini

Anônimo disse...

Sabe o que as vezes eu fico pensando? Ora, mas será que nós todos no fundo não queremos ser enganados? Seja por uma realidade montada, pela realidade nua e crua, pelo documentário, pela ficção... Será que quando assistimos um filme no fundo o que queremos não é sermos enganados? E mais... porque será que essa vontade de ser enganado pelo cinema é tão criticada?

Lisandro Nogueira disse...

Fantini,
Os comentários lacanianos e do Virillo são bons e os filmes limitados (esses q. estamos comentando). Vou postar hoje um comentário sobre o debate cinematográfico e as outras áreas. Sobre e a vontade de ser enganado (postado pelo anônimo): a ilusão cinematográfica nos fornece inúmeras gratificações. Mas existem enganos e enganos. É duro sermos enganados por "qualquer filme" a vida inteira. Um bom texto sobre essa questão: "Cinema, revelação e engano", de Ismail Xavier - In: O olhar e a cena.

Anônimo disse...

O filme Forrest Gump não me revelou uma "regressão infantil", talvez seja meu conhecimento provinciano, eu penso. Portanto, acredito que o enredo do filme se mostra eficiente no seu objetivo e com um acompanhamento histórico mundial, trazendo fatos que marcaram, com toda propriedade, a memória dos que viveram a época ou apenas a conheceu por outros. Não considero a simplicidade ( sem grandes revoluções de pensamentos complexos)e fórmulas de se fazer filmes como Spielberg "regressões" ou "estúpidos e maldosos". Considero que a magia do cinema comporta universos variados e maneiras de construções cinematográfica e literária que não podem ser desprezadas.

Lisandro Nogueira disse...

Gabrielle,
não é questçao de desprezo. Falamos aqui da necessidade do juízo estético. Gosto é gosto e devemos respeitar todos eles. Mas IA e Forrest são filmes menores dentro da cinematografia mundial. Estou falando de juízo estético. Mas penso que esses filmes (Fantini já falou sobre isso, aqui) são tb. importantes para se discutir variados assuntos: tecnologia, bioética, etc. Gostei de sua participação. Vamos continuar o debate.

Bells disse...

Lisandro, Steven Spilberg é O diretor!

A.I não é um filme estúpido e maldoso como você escreveu aí. Esse filme faz a gente pensar sim.
Pode não ser sobre a crise econômica mas sobre o futuro do planeta também (spoiler: depois que o mundo é tomado por aqueles robôs e a humanidade é extinguida, isso não é pra se pensar?) Do jeito que as coisas vão atualmente (não precisa necessariamente seguir o filme), mas estamos próximos de acabar com a própria vida da Terra, posso citar o Aquecimento Global. Isso não é algo para se pensar?
As vezes a estética não é o principal do filme mas o que ele se trata.
O cinema também foi criado para enganar as pessoas sim, isso é verdade, mas se a gente pensar só na realidade o que será de nós?

Tropa de Elite não foi um filme terrível, mostra a verdadeira violência que não é mostrada muito na televisão (novela por exemplo), mas mostra com mais detalhes e profundamente nos jornais. A estética pode não ter sido a melhor mas mostra a verdadeira realidade que nos cerca.

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