sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Gomorra, um filme importante sobre a máfia.

Gomorra: o avesso do Poderoso Chefão.


Lisandro Nogueira

O filme Gomorra entrou em cartaz em Goiânia. Ganhou o prêmio do júri no Festival de Cannes 2008 e foi indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Não é um filme fácil e as comparações com Cidade de Deus são muita apressadas. Gomorra problematiza com acuidade as questões. Seu estilo direto encanta e causa também repulsa. Conteúdo e forma são instigantes.
Os filmes do Poderoso Chefão são sempre lembrados quando se fala em máfias italianas. Mas aqui o enfoque é completamente diferente.
Escolhi um texto, logo abaixo, do crítico português Rui Vieira, para começarmos a conversa sobre esse filme controverso.

Gomorra: filmar a máfia sob a capa da crueza

Rui Pedro Vieira

As imagens são baças, movediças, com a câmara a não hesitar perante movimentos abruptos, «preferindo» várias vezes as costas das personagens em vez de incidir sobre os seus rostos marcados. O tempo da acção está sempre carregado de nuvens e o palco para esta longa jornada que se parte em cinco é um reincidente bloco de prédios com tinta lascada, vidros partidos e caves pouco recomendáveis.

«Gomorra» é um filme sobre a máfia italiana. Mas tem muito pouco de «glamour», de enaltecimento da vida do crime, de divinização de quem opta por corromper o sistema e corromper-se a si próprio, aniquilando os valores e os afectos em prol de uma corrente violenta e endinheirada.

Os esquemas da Camorra, a máfia napolitana cujos tentáculos nem sempre são fáceis de detectar, continuam a ser notícia, como quando ainda este mês se soube que vários carros de luxo apreendidos (na ordem dos Ferrari e dos Lamborghini) iriam voltar à estrada para serem conduzidos por agentes da polícia. Pois bem, a autoridade é um fantasma nesta adaptação poderosa do romance muito elogiado de Roberto Saviano, que entretanto foi forçado a segurança máxima e a mudar de residência de quando em vez, desde que decidiu expor em livro as entranhas de uma força poderosa, que rima com crime organizado e flúi por onde menos se espera.

O excelente filme-mosaico de Matteo Garrone, um realizador pouco admirado que rapidamente passou para a primeira linha do novo cinema italiano (algo menorizado nos últimos tempos, com a excepção honrosa de Nanni Moretti), faz jus a essa vontade de mostrar os esquemas criminosos segundo um ponto de vista interior, dando a ilusão de um programa documental, hiper-realista, ruidoso visualmente, mas que captasse de perto as vidas de quem se embrenha nesta hierarquia viciada que, muitas vezes, termina tudo com uma bala seca.

Ao fragmentar-se em vários episódios, que se entrecruzam e se desviam sem comprometerem a homogeneidade dramática, «Gomorra» eleva-se, embora o ponto de vista esteja sempre rasante, bem colado na posição térrea e obscura de um par de personagens desarticuladas.
Ao querer também desmontar a suprema eficácia esquemática de quem vive «na e para a máfia», o filme surpreende ao seguir os passos de um jovem, filho do bairro onde a acção predomina, aparentemente ingénuo, que entrega as compras à vizinhança mas que, quando dá por si, está já a vestir um colete de balas para se sentir preparado para herdar o peso de uma rede ilícita, torna-se cúmplice de homicídios e acaba por largar a inocência à pressa em nome de um vício chamado crime.

Depois há os dois amigos desajeitados que sonham ser como Al Pacino em «Scarface», há o alfaiate que cede ao dinheiro de um grupo de chineses e compromete as suas chefias, há o homem que faz pagamentos sem saber se chegará ao dia seguinte, há as mães que pagam pelos actos dos filhos, há o veterano quase sem voz que finge oferecer uma oportunidade de ouro para entrar na «enorme família», que é também aparentemente invisível, mas que se faz sentir pela violência. Que nunca é vã.

É por estas linhas que se define a teia de «Gomorra», obra que se expõe sem complacências, fugindo aos cânones da ficção, ignorando a banda sonora elaborada, os diálogos moralistas, as referências a «O Padrinho» (embora a sua imagem icónica seja recorrente na memória), a separação clara de narrativas.

Houve quem tenha criticado a duração alongada e alguma falta de contenção e selecção nas cenas, mas a escolha de Matteo Garrone é precisamente a de criar a ilusão de que a realidade é mesmo assim: crua, lacónica e pouco perceptível.

Ao desmontar os esquemas e aos expô-los para lá dos pontos de vista que já conhecíamos, «Gomorra», que venceu o Grande Prémio do Júri do Festival de Cannes deste ano, é um estudo humano inquietante: porque mostra como estamos expostos ao vício. Sem mais. A cena final, neste ponto, é desarmante.

17 Comentários

Marcus Fidelis disse...

Lisandro,

Entrei só para desejar um feliz Natal e um ótimo 2009, com muitos bons filmes.
Grande abraço,

Marcus Fidelis

Riccardo Joss disse...

Poderiámos falar de um neo-realismo italiano?

Lisandro Nogueira disse...

Olá Marcus Fidélis, grande Marcão, feliz 2009 para você tb. E entre sempre no blog para participar dos papos e comentários.

Lisandro Nogueira disse...

Olá Ricardo,
Poderíamos falar de um diálogo com o neo-realismo. A maneira como mostra a Itália e seus problemas, lembra muito o enfoque neo-realista. Mas devemos lembrar que o neo-realismo italiano (anos 40/50) é diverso e comporta muitos estilos. Vitoria De Sica seria o cineasta mais próximo do estilo de Gomorra?

Marco A. Vigario disse...

Gostei muito desse filme. Não tem nada a ver com Cidade de Deus, como quer o marketing oportunista. Talvez por estar mais quente na memória, Linha de Passe me veio à cabeça durante toda a projeção. Mas Gomorra é mais amargo. É melhor que O Poderoso Chefão? Não. Um não quer ser o outro. O filme do Coppola é excelente à sua maneira: clássica.

Lisandro Nogueira disse...

M. Aurélio, concordo contigo. Cidade de Deus tem muito oportunismo. Aquela cena dos meninos, um atirando no outro, é ridícula. O Poderoso Chefão é excelente tb.mas passa por outra vertente, como você afirmou. São filmes instigantes para compreender como funciona e se estabelece um grupo criminoso - inclusive com seu fascínio.

Unknown disse...

Sobre "Gomorra", em fato, um grande filme! Obrigado pela dica, Lisandro;
Mostra a tragedia que a mafia representa, sem glamour, sem fundo musical...
Como o Rui Pedro Vieira comenta, as cenas mostram a realidade em sua essencia, i.e. "crua, lacónica e pouco perceptível" (neste sentido, me vem a mente outro grande filme de 2008, "Linha de Passe");
Abracos,
Laerte

Lisandro Nogueira disse...

Este comentário foi removido pelo autor.

Anônimo disse...

"Gomorra" não é um grande filme. Começa com o chamado "trocadalho do carilho": fazer um filme sobre a Camorra chamado... "Gomorra"! Por acaso "Gomorra" mostra alguma Gomorra, no sentido bíblico? Não, apenas o autor gostou da palavra.
Pior de tudo é que não dá para ter certeza de se o autor não está fazendo, na verdade, o jogo da Camorra, sob o pretexto de denunciá-la. Aliás, admitindo a hipótese (quase fantasiosa) de que o autor pretendesse fazer uma denúncia, a quem esta seria dirigida? A cada um de nós, que sai arrasado do cinema achando que um mundo sem máfia não é possível? Ao governo italiano, que não existe no filme?
À ONU? Ao papa?
Ficou parecendo que aquela história de que o escritor teve de viver clandestinamente, pois estava ameaçado pela Camorra, não passou de jogada de marketing ("Nossa, o filme/livro deve falar a verdade mesmo, se os bandidos ficaram tão bravos!").
Quanto à linguagem do filme, parece que o diretor optou por transformar as limitações, falta de recursos, em "estilo", seguindo o mandamento que nos ordena "fazer de ácidos limões doces limonadas". Por isso o filmar de perto (para que não se veja o cenário inadequado), o abuso do som (por exemplo, de tiros) sem a imagem correspondente.
No mais os paralelos (ausência do Estado, o entregador que passa a fazer parte da quadrilha é o jovem fotógrafo de "Cidade...", a falência do projeto moderno corporificado em conjuntos habitacionais favelizados) com "Cidade de Deus" são fortes. Dá quase para dizer que sem Meirelles não existiria Garrone. Mas "Cidade..." sempre ganha na comparação. Por um motivo simples: ali se buscou estetizar algo, aceita-se o artístico, o lúdico. Matteo Garrone é um burocrata da "Verdade", vê com horror a simples possibilidade de tratar com senso crítico o material fílmico e a realidade sociológica que pretende abordar.

Lisandro Nogueira disse...

Caros amigos, esse comentário estava acima desse do Teixeira. Tinha um pequeno erro e não consegui colocar no mesmo lugar. REpito o comentário embaixo com o erro corrigido:

Laerte, "Gomorra" é realmente um bom filme. Mas as pessoas (boa parte delas) não estão gostando: "muito longo, chato, imagens duras, etc". É tudo "isso" mesmo. Porém, o filme é bem realizado.

Anônimo disse...

Mas o mais patético em "Gomorra" é o recurso paupérrimo de culminar a narração com letreiros (um caso de falência da linguagem cinematográfica), no final, contendo "fatos" estatísticos, econômicos, geopolíticos. É como se o cineasta tenha terminado o filme, e constatado que não convenceu. Daí recorreu aos "números", tentando dizer ao público: "Tudo bem, esses bandidos são mesmo chinfrins, é difícil de acreditar que os dois jovens 'dissidentes', embora ingênuos, fossem ser mortos por assassinos gordos, velhos, como os da armadilha final. Mas a Camorra é perigosa mesmo! Juro para vocês. Olha, tanto é, que... vejam esses números..."

Marco A. Vigario disse...

Apesar de discordar de alguns pontos, acho que o José Teixeira tem razão. Esse filme não vai resistir a uma revisão mais exigente. Na minha cabeça, à medida que o tempo passa, ele só diminui. Ao contrário do colega, no entanto, não acho que a "estética" de Gomorra seja motivada por falta de criatividade ou de dinheiro. O tal estilo "documental" é uma escolha muito consciente, dentro de uma tendência do cinema. A questão, cada vez mais clara pra mim, é que esse caminho é perigoso e, se mal realizado, estreita as possibilidades do filme. Parece que é justamente o que acontece com Gomorra.

Anônimo disse...

Caro Marco,

a propósito, você assistiu ao filme "A bruxa de Blair", apontado, junto com o cinema do grupo Dogma, como o caminho mais fértil para a cinematografia mundial?

Anônimo disse...

Caros amigos, Gomorra é um filme político, têm seus problemas na confecção dramática mas é infinitamente mais honesto do que "Cidade de deus". O filme de Meirelles é maldoso com as crianças e com todos nós. É maldoso porque usa de estratégias narrativas fáceis para enganar o público. Gosto de Gomorra pela ousadia e experimentação. As comparações com Cidade de Deus são interessantes: Gomorra é bem melhor e honesto (lisandro).

Anônimo disse...

Lisandro,

só continuo essa conversa nos seus termos (ela ia num rumo mais interesante, com a intervenção do Marco Vigario, complementada pela minha lembrança da "Bruxa de Blair") porque pode ser uma oportunidade de crescimento para você, considerando-o como cinéfilo, professor, jornalista, formador de opiniões e sensibilidades. Acredito que um erro seu, se persistente, é muito mais grave que o de uma pessoa comum.
Mas, Lisandro, você parece ter problemas pessoais com o Fernando Meirelles, não é de hoje. E sou obrigado a defender Meirelles (seguindo também a norma do "respeite, para ser respeitado"), seja como brasileiro (você ataca de modo irresponsável uma produção importante de meu país), seja como velho amigo e ex-colega de Cineclubefau (da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP), do qual Meirelles fez parte entre 1976 e 1977, que vê na bem-sucedida (e a mais premiada das últimas décadas, entre as brasileiras) produção cinematográfica "meirelliana" marcas da convivência em nosso cineclube (você é tão orgulhoso do Antônio das Mortes, deveria ser o primeiro a reconhecer o trabalho originário de outras experiências cineclubísticas), por exemplo, a discussão sobre o cinema de Dziga Vertov (o cinema-olho vertoviano pode ser reencontrado em "Cidade de Deus") e também o de Godard, que inspirou (com "Alphaville")Meirelles em sua busca de um espaço não localizado, como em "Ensaio sobre a Cegueira".
Paro por aqui, não sem antes apontar seu erro de foco na discussão (como o de somar "laranjas e bananas"). Eu afirmei: "'Cidade...' sempre ganha na comparação [com 'Gomorra']. Por um motivo simples: ali se buscou estetizar algo, aceita-se o artístico, o lúdico". Você vem a público, num espaço sério de discussão, dizer que "o filme de Meirelles é maldoso [!!!] e infinitamente menos honesto [que 'Gomorra']". Maldade, honestidade?!! Se ainda fosse o dragão da maldade... Você confundiu alhos com bugalhos! A questão a ser pensada, que merece reflexão, é sobre a importância que há ou pode haver em "estetizar algo", "aceitar-se o artístico, o lúdico". No mínimo, para mudar de assunto, você deveria dizer "estetizar, artístico, lúdico", não é por aí...

Anônimo disse...

Caro Teixeira, já afirmei várias vezes aqui que Meirelles é um bom cineasta. Mas a cena dos meninos em Cidade de Deus é oportunista e maldosa. O seu desrespeito com a tradição e com a história da cultura brasileira (leia a Bravo na qual ele,sem elegância e respeito, bate em Glauber Rocha e no Cinema Novo) foi desonestidade. Glauber Rocha está morto e não pode respondê-lo. Nesses termos usei o maldoso e desonesto. E já fiz a pergunta aqui no blog: depois de quarenta anos Glauer Rocha é reconhecido como um dos grandes cineastas da história do cinema. Vamos aguardar 40 anos para ver o que acontecerá com Meirelles. ps: não tenho nada pessoal e contra ele.(Lisandro Nogueira)

Marco A. Vigario disse...

Teixeira: Desculpe a demora em responder. Conheço "A Bruxa..." e alguma coisa do Dogma, sim. Gosto da Bruxa. Acho que é uma saúdavel brincadeira com a linguagem do documentário. Já o Dogma - interesse histórico à parte - não faz tanto a minha cabeça. Pode ter certeza que eu nunca indicaria esse como o "caminho mais fértil" para o cinema.
Quanto ao Gomorra, não creio que ele siga exatamente a linha do Dogma. Não há deficiência de iluminação, por exemplo, no filme do Garrone. O que há, pelo contrário, é uma iluminação pensada para parecer "crua, direta, real". Acho que há uma elaboração e uma estetização ali, sim. O problema, pra mim, é que a força desse trabalho se perde no meio do caminho.

Postar um comentário

Deixe seu comentário abaixo! Participe!

 

Blog do Lisandro © Agosto - 2009 | Por Lorena Gonçalves
Melhor visualizado em 1024 x 768 - Mozilla Firefox ou Google Chrome


^