A melancolia e o tempo implacável
Lisandro Nogueira
O tempo é implacável e sua voragem, inclemente e assustadora. Porque esgrimimos contra a morte, tentamos fazer do tempo um aliado. Porém, fugidio, ele nos escapa, sempre. Em seu movimento inexorável, arrasta tudo e reserva-nos uma teleologia trágica.
Com forças inimagináveis, erguemos paliçadas para enfrentá-lo. Uma das mais corriqueiras é a ficção. Ela nos alivia e promete, pelo menos, o enfrentamento sem vitimismos, uma vivência embasada em certo estoicismo e, finalmente, nos apresenta um “modo de sofrer” em que a existência possa fazer sentido.
Caden Cotard (Philip Seymour Hoffman) é um diretor de teatro que já acorda com a dor de viver latejando: “Eu não estou me sentindo bem”. A narrativa [filme em cartaz no Cine Lumière] realista das primeiras sequências (cenas interligadas que expressam sentido por meio da montagem) entrega-nos os personagens e o tom dos seus psiquismos. Somos especialmente apresentados a um homem, pletora de angústia e melancolia.
Como afirma Maria Rita Kehl, “o eu que nos sustenta é uma construção fictícia”, que depende do olhar do mundo (das outras pessoas) para manter-se em certo equilíbrio. Cotard tenta manter o equilíbrio e nós o seguimos com as sinédoques. A parte pelo todo e o todo pela parte vão compondo uma narrativa em que o espectador é instado a completar e dar sentido. Cotard busca na ficção (teatro) uma compreensão da existência ou uma sustentação para ela. E nós, fora do espaço ficcional, ansiamos por uma “ficção” capaz de abrigar nossas perguntas existenciais mais prementes.
Essa fábula (história) é comum no cinema e na literatura: um homem sofre e a narrativa tece seu embate com a vida. Todavia, há filmes e filmes. O que me chama a atenção é como Charlie Kauffman, o roteirista e diretor, organiza o tempo da sua narrativa. Toda narrativa é uma forma de organizar o tempo da ficção e esse aspecto ganha relevância pela mistura de realismo-naturalismo (nas primeiras sequências), tons surreais, por metáforas e elipses edificadas na montagem quase totalmente não-linear e na mise-en-scene (encenação).
Essa mistura é, em parte, problemática. Ao pretender a não linearidade e distanciar-se da narrativa de estrutura clássica, Kauffman exagera no tom “buñuelesco” (Luis Buñuel, cineasta espanhol, morto em 1983, conhecido por seus filmes surreais) e complica a trama (a disponibilidade dos fatos na narrativa) com a sobreposição de situações que se estendem e se repetem sem necessidade.
O ponto alto do filme encontra-se exatamente onde a mistura dá certo e nos gratifica com tanta beleza visual e visão poética do mundo. No final, as confluências de espaço (Nova York é uma fantasia) e tempo (não há cronologia) e a intensa humanidade de Cotard colocam-nos frente a frente com a nossa precária e interessantíssima existência, e com uma ficção que não consola nem promete uma teleologia feliz. No entanto, nos faz refletir e apreciar a construção de um personagem intenso e poético.
Ser único e parte do todo
João Fantini*
Kaufman escreve como um psicótico, onde as referências são superpostas
pela figura onipresente do personagem principal, no entanto, ao final,
o que parece uma historia contada por um psicótico se reverte em uma
inscricao poética, no qual o personagem representa a possibilidade
humana de ser único e parte do todo humano.
O final do filme é um soco na boca do estômago do espectador: a
maravilha e a finitude humanas se encontram na representacão da
insignificância de nossas vidas quando positivadas pelo tempo.
A construcão da narrativa, um suposto diretor que edifica uma peça
que nunca é encenada, poetiza a vida do homem comum, obrigado a
representar sua pequena peça até o dia em que é tirado de cena pelo
tempo. O melhor trabalho de Charlie kaufman, que também dirige.
* João Fantini é psicanalista e prof. na UFSCAR.
pela figura onipresente do personagem principal, no entanto, ao final,
o que parece uma historia contada por um psicótico se reverte em uma
inscricao poética, no qual o personagem representa a possibilidade
humana de ser único e parte do todo humano.
O final do filme é um soco na boca do estômago do espectador: a
maravilha e a finitude humanas se encontram na representacão da
insignificância de nossas vidas quando positivadas pelo tempo.
A construcão da narrativa, um suposto diretor que edifica uma peça
que nunca é encenada, poetiza a vida do homem comum, obrigado a
representar sua pequena peça até o dia em que é tirado de cena pelo
tempo. O melhor trabalho de Charlie kaufman, que também dirige.
* João Fantini é psicanalista e prof. na UFSCAR.
11 Comentários
Este comentário foi removido pelo autor.
Professor,
Para ler seu texto consultei o Aurélio algumas vezes.
(Começando pelo título do filme.
• Sinédoque? [Do gr. synekdoché, ‘comparação de várias coisas simultaneamente’, pelo lat. synecdoche.] Com acento no "e" e não no "o".
• Paliçada? 1.Tapume feito com estacas fincadas na terra. 2.Obstáculo feito para defesa militar. 3.Liça para torneios ou lutas.
• Teleologia ? 1.Estudo da finalidade. 2.Doutrina que considera o mundo como um sistema de relações entre meios e fins; teologismo. [Cf., nesta acepç., finalismo.] 3.Estudo dos fins humanos.)...
No final consegui entender a mensagem e curioso em assistir o filme.
No seu texto, a palavra que melhor caracteriza o filme é "EXAGERA".
Ontem visitei uma exposição sobre linguagens digitais onde havia uma instalação que o visitante tentava com um joystick acertar um alvo com um ponto de interrogação, mas ninguem conseguia.
Quando o sujeito desistia, ia procurar o nome da obra, onde abaixo se lia que a instalação era uma tentativa de fazer as pessoas pensarem um pouco sobre sua relação com os games.
Acho que Sinédoque é isso sobre o tempo na vida. Discordo do Lisandro que Kaufman se perdeu em algum momento. Acho que isso é o estilo dele, que pode ser visto em outros roteiros (ja que este filme, acho, é sua estreia como diretor), e que procura deliberadamente fazer com que o espectador se perca na sua busca neurotica de sentido fechado para tudo que vê.
E o final do filme, bem, ai é um filme à parte.
Grande cometário Lisandro, para um grande filme. Esse é imperdível mesmo! (não o show da Daniela Mercury)
Fantini,
Sim, é o primeiro filme dirigido pelo Kaufman.
Vou assistir durante a semana. Ontem, vi "A Teta Assustada". É realmente um bom filme, e não entendo as ressalvas que parte da crítica teve para com ele.
Abraços.
O filme de Charlie Kaufman é uma grandiosíssima perda de tempo. Me fez lembrar muito "Um beijo Roubado", do Kar Wai, outra enorme perda de tempo e dinheiro. Interessante que eu não sabia o que era sinédoque e, depois que li a explicação do termo pelo comentário de Thomas Silva, pude compreender melhor do que de fato se trata o filme. O filme é nada mais nada menos que a própria definição do termo em si: uma comparação de várias coisas simultaneamente. Como não se sabe que coisas ele está comparando com que coisas, fica isso por isso mesmo. A crescente presença da não cronologia e até da não linearidade do começo até o final do filme, que na minha opinião vai num crescendo durante toda a trajetória do mesmo, só faz tudo ficar muito mais difícil de ser compreendido. Se os realizadores da película prezavam pelo não entendimento, eles acertaram de mão cheia, porque eu não entendi "patavina" e tenho certeza que meus companheiros de sessão também não entenderam nada, a não ser que os mesmos tenham feito doutorado na Nasa, o que não é o meu caso. Aliás, assim como o filme de Kar Wai, não há nada o que se entender neste filme. A única coisa que talvez tenha algum interesse no filme seja bem no final, quando uma voz em off faz uma espécie de digressão sobre a vida e a sua efemeridade, num período de algo como 7 ou 8 frases, ou seja, quase nada comparado com a imensidão de tempo que é o filme. A produção é exageradamente longa. Não havia qualquer necessidade de uma tal duração de filme. Qual o porquê de se ficar enrolando o espectador por três horas, ou duas, ou sei lá quantas horas, para que só nos minutos finais se desse uma "explicação" do que "ocorreu" nas centenas de minutos anteriores? Como o "relevante" do filme são só os minutos finais, Kaufman teria sido mais feliz se tivesse feito um curta-metragem de 10 minutos. As duas ou três horas em que fiquei no cinema mais me pareceram alguns dias. Não porque o filme não passava nunca, como foi o caso de "Um beijo roubado", mas porque é tal a quantidade de informações passadas pelo filme, informações totalmente desconexas passadas velozmente através dos diálogos e das cenas e dos sons, que você perde completamente a noção de tempo e espaço. Ao final do filme fiquei exatamente como Caden Cotard, morto.
Oi Amarante,
Uma das características do filme de hollywood é que ele consegue nos prender e a gente nem vê o tempo passar. Você viu um filme não-linear, não hollywoodiano, e nem viu o tempo passar. Então o filme, que você não gostou, prendeu a sua atenção.
Eu vi o filme e não achei nem bom e nem ruim. Como afirmam os dois textos, tem sim poesia. Agora o "Beijo roubado" é uma roubada de verdade.
Amigos do blog,
O Joss tem certa razão: o filme exagera. O outro lado: faz tempo que não vejo um filme tão humano e sensível.
Um dos filmes mais chatos que já vi. Salva só o ator.
Tive uma grata surpresa com o filme, que o tempo todo faz brincadeiras com quem assiste. Me lembra o Fantasma da Liberdade, mas sem tanta ruptuira. Encontro uma metáfora sobre o fazer ficcão dentro do próprio filmes. Em alguns momentos mostra não estar preocupado em sanar nossa curiosidade e manter o elo de ligação, o que não impede a identificação do espectador, pelo menos aqueles que já conseguem um pouco se distanciar da narrativa e olhar menos envolvido.
Belas reflexões sobre nossa breve passagem pela terra e quão ácida pode ser a solidão, mas ao mesmo tempo necessária e criativa. E para completar o vejo com algum humor e o papel da filha é ilário. Com que inocência e graça pode ser ao mesmo tempo tão verdadeira.
Não gostei, e até agora não achei ninguém, que pelo menos conheço pessoalmente, que tenha tecido um elogio. Aqui mesmo no blog, apenas, se não me engano, a Mariana falou bem de Sinédoque, New York. Não gostei porque foi monótono e sem nexo. Talvez meu olhar esteja acostumado aos filmes de Hollywood e Charlie Kaufman, na tentativa de distanciar-se da narrativa de estrutura clássica acabou não me agradando.
A história no início até me pareceu interessante, contudo, com o desenrolar da narrativa me deu tédio. O filme tem duração de 105 minutos, mas como disse o comentário do colega Tiago Amarante "Kaufman teria sido mais feliz se tivesse feito um curta-metragem de 10 minutos."
Então, a história. Quanto a ela é meio estranho pensar que alguém fica 17 anos elaborando uma peça de teatro. Muita melancolia. As única coisas que me chamaram atenção foram o nome da obra, Sinédoque, New York, e o cartaz que está em exposição no cinema Lumiere.
A trilha não é lá essas coisas. A fotografia não foi uma das piores. O enredo sim, isso para mim, ficou muito a desejar. Enfim, não me agradou, não me emocionou e ponto final.
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