terça-feira, 23 de março de 2010

Como destruir um filme

Como destruir um filme

José Geraldo Couto*

 

Se eu aprendi alguma coisa nesses anos todos de crítica de cinema, foi que, para quem escreve, é muito mais fácil destruir um filme do que tentar desvendá-lo aos olhos do leitor/espectador ou, como queria André Bazin, "prolongar o máximo possível, na inteligência e na sensibilidade dos que o lêem, o impacto da obra de arte".
Ah, demolir é tão mais tentador. É ali que o soi disant crítico pode não apenas destilar o seu fel como exibir o seu talento para o sarcasmo e a tirada espirituosa. Geralmente em frases curtas, sentenciosas, definitivas. Em alguns casos, sou obrigado a admitir, o resultado é irresistível.

Como no exemplo máximo de concisão e crueldade atingido por Pierre Ajame, no L'Observateur: "Esperávamos o pior, e é pior". Ou na crítica imaginada por Jorge Luis Borges na Arte de injuriar: "Um encanto o último filme do engenhoso diretor René Clair. Quando nos despertaram..."
Nem sempre as críticas demolidoras têm essa finesse. No mais das vezes limitam-se a elencar adjetivos brutais e piadas um tanto óbvias. Outra coisa que aprendi: quanto menos argumentos se tem, mais virulenta é a linguagem.

Atribuir intenções

Uma das estratégias mais usadas para destruir um filme é atribuir a seu diretor intenções que ele teria deixado de realizar. Exemplo recente: pouco importa que Michael Hanecke tenha dito mil vezes que não pretendeu descrever a gênese do nazismo em A Fita Branca. Vira e mexe, um crítico o condena por ter explicado de maneira pouco consistente ou convincente... a gênese do nazismo.
Outro recurso infalível é a comparação desvantajosa com outro filme que trate de tema correlato ou que lance mão de algum procedimento estético parecido. Como se toda narrativa descontínua, por exemplo, quisesse emular o Cidadão Kane ou todo drama num espaço fechado tivesse que se igualar a um Bergman.

Disposição prévia

Há sempre como iluminar os aspectos da obra que, isolados do conjunto, corroboram a visão negativa.
Para ilustrar melhor o que quero dizer, não resisto à tentação de transcrever um trecho de um artigo que publiquei na Folha há 16 anos, no curso de uma polêmica um tanto acalorada com Marcelo Coelho, de quem sou admirador, a propósito de Manoel de Barros. Lá vai:
Vista ao microscópio e sem um mínimo de generosidade, toda grande literatura, toda grande obra, tem em seu interior passagens "amadorísticas", "filosofias triviais", "banalidades". Por que escapa de ser considerada uma platitude uma frase como "Viver é muito perigoso", reiterada inúmeras vezes ao longo de "Grande Sertão: Veredas"? Porque, dirá um estudioso, é como um mero tijolo numa catedral, um motivo recorrente numa sinfonia etc.
Mas o fato é que um crítico azedo, quando o livro foi lançado, poderia ter-se prendido a frases como essa para dizer que Rosa não passava de um tapeador –como, aliás, muita gente achava e alguns continuam achando. O mesmo vale para os famosos primeiros versos de "Os Lusíadas", de Camões, com a repetição insistente da rima "pobre" de verbos no particípio: "assinalados/ navegados/ esforçados" etc.

O que quero dizer é que a avaliação de uma obra depende muito da disposição prévia do crítico. Se ele quiser destruí-la, nada o impedirá de fazê-lo –nem mesmo a qualidade da obra em questão. Tomemos o "Hamlet" (de Shakespeare, não o do Zé Celso). O crítico poderia escrever:


"Um texto confuso, em que não se sabe se o protagonista é louco de verdade ou se finge sê-lo, e cujos buracos na trama são preenchidos por longos e tediosos monólogos em que despontam frases idiotas como 'Ser ou não ser, eis a questão' ou 'Há mais coisas entre o céu e a Terra do que sonha sua filosofia'. Em certos momentos, para fazer avançar a ação, o autor chega a apelar ao artifício fácil de fazer aparecer um fantasma. Aparentemente sem saber que desfecho dar a seu estapafúrdio enredo, o autor coroa tudo com um dos finais mais ridículos da história do teatro, em que morre literalmente todo mundo, uns envenenados, outros feridos à espada. Em suma, o tipo do espetáculo que deve agradar uma classe média ociosa que nunca ouviu falar em Corneille e Racine."

Fim da autocitação. Desculpem se me estendi, mas acho que o assunto merece.

* publicado em: blog do José Geraldo Couto em 19.3.2010.

4 Comentários

Lian Tai disse...

Concordo!!! A crítica é importante para levantar debates e apontar para novos olhares, não para pronunciar julgamentos e sentenças definitivas. Infelizmente os críticos mais valorizados são aqueles que "destroem" as obras.

Caroline Pires disse...

Amei esse texto. Que tapa com luva de pelica hein?

Eu mesma já me peguei várias vezes "destruindo" um filme por destruir. O último que fiz isso foi com Preciosa... vou vê-lo de novo.

Não sei se tem muito a ver o que vou dizer mas...
Estou lendo (ou melhor, me aventurando a ler)O mal estar da pós modernidade do Bauman e acho que essa questão de destruir filmes tem relação com a tal necessidade quase inata de manter a "pureza e a ordem de certos filmes e diretores".

Criamos uma "ordem" definitiva do que é filme de arte, de Hollywood, Cult... e acabamos fugindo pela saída mais fácil: totalitarismo (mesmo disfarçado) que não aceita as diferenças e força uma pureza (entendida como ordem)nos filmes. Daí as críticas agressivas e as comparações forçadas que se faz.

Acho que um exemplo vai dizer mais do que mil palavras sobre esse dilema da busca pela pureza, entendida como ordem, no cinema: a Grace do filme (tão citado e comparado) Dogville... quem viu nunca mais esquece!

Elaine disse...

Esse texto é genial. O blog aqui é corajoso em publicar esse texto.

Leonardo Priori disse...

Uma coisa que particularmente me irrita são críticos chamando de chavão algo que é exatamente o contrário. Como quando alguém não usa da ordem cronológica para contar a história. Sempre alguém vai dizer que aquilo é um chavão, que muitos filmes apelam para ordem não cronológica. Ou que cena de nudez é um chavão. Penso que a falta de nudez crua que mostra o pudor de Hollywood e não a presença que é um chavão do "cinema cult".

Outra marca desta vontade de destruir parece a utilização do termo "auto-indulgente". Muitas vezes ele parece ser usado ao leu em tentativa gratuita de descaracterizar o filme. É fácil pegar um filme onde o autor trabalha com auto referencia e chama-lo de auto indulgente.

Sobre intenções prévias é engraçado ver as críticas do www.zerozen.com.br. Ele é um site de humor com objetivo de dar críticas negativas a tudo que se é produzido. Navegar por ali deixa claro como é fácil enganar os leitores com críticas negativas.

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