quinta-feira, 20 de maio de 2010

Manoel de Oliveira, 100 anos - entrevista


 Quem é Manoel de Oliveira

Estreou no cinema como figurante no filme Fátima Milagrosa (1929) e como diretor no documentário Douro, Faina Fluvial (1931). Como ator, participou no filme A Canção de Lisboa (1934). Aniki-Bobó (1942), o seu primeiro longa-metragem, é uma das obras mais significativas do cinema português: história infantil, de um naturalismo poético extremamente bem desenvolvido, é precursora do neo-realismo italiano. Com O Pintor e a Cidade (1956), obteve a Harpa de Ouro do Festival de Cork (Irlanda). 
Em A Caça (1963), obra violenta e quase agressiva, consegue uma sutil interpretação entre o real e o simbólico. Em 1975, estreou Benilde ou a Virgem-Mãe, segundo a obra de José Régio, seqüência de O Passado e o Presente (1971). Os filmes Amor de Perdição (1978), Francisca (1981), Sob o Sol de Satã (1985, Prêmio da Crítica no Festival de Veneza, onde o diretor foi distinguido com o Leão de Ouro pelo conjunto de sua obra), O Meu Caso (1986) e Os Canibais (1987) vieram corroborar a opinião dos que o proclamam o maior cineasta português. Prosseguiu a sua obra com Non ou a Vã Glória de Mandar (1990), A Divina Comédia (1991), O Dia do Desespero (1992), Vale Abraão (1993), A Caixa (1994), O Convento (1995), Party (1996), Viagem ao Princípio do Mundo (1997), A Carta (1998), La Princesse de Clèves (1999). Foi homenageado no Festival de Cinema de Veneza em 1991.
Participou no filme de Wim Wenders Viagem a Lisboa (1994). Em 1994 recebeu o Prêmio David Donatello por sua carreira e o Prêmio Akira Kurosawa, no Festival de Cinema de São Francisco.


ENTREVISTA*

 Jornal de Notícias| Não há algo pernicioso em chegar à sua idade na plena posse das faculdades? Discute-se mais a longevidade do que o teor dos filmes que faz?

Manoel de Oliveira:  Isso não me inquieta. Mas admito que seja verdade. No Porto, mas também noutras cidades em Portugal e no estrangeiro, sou abordado por desconhecidos, novos e velhos, que possivelmente nunca terão visto os meus filmes.


Trocava esse carinho ou reverência por uma maior discussão sobre o seu trabalho?

Não é uma questão de trocar? Cada um tem a sua sina e o seu destino. A idade é um capricho. Fazer cinema é uma paixão, algo interior. Bem ou mal feitos, os filmes são uma vocação.


Desliga-se afectivamente de um filme mal o termina ou sente que ele só está concluído a partir do momento em que outros o vêem?

A crítica é indispensável. Mais importante ainda é um complemento. Por isso, o filme só está acabado depois de ser visto. Por algum público e de preferência pelos críticos. São eles que vão acabar o filme. Como há muito de inconsciente no trabalho de um artista, é o crítico que vai buscar esse lado, de que o artista nem se deu conta. Veja-se o caso de "Os Lusíadas". Alguém duvida que o livro não seja mais rico hoje, depois de ter sido examinado em diferentes épocas?


Já existem movimentações para assinalar o seu próximo aniversário, o 100º. Como gostaria de comemorá-lo?

É uma data íntima que sempre festejei em família. Agora, quase todos os amigos da minha idade, e também boa parte dos familiares, desapareceram? A juventude é um tempo extraordinário em que as pessoas desconhecem que estão verdadeiramente a viver. Só com o passar dos anos é que nos apercebemos dos momentos extraordinários já vividos.


A melhor prenda seria a abertura da Casa-Museu?

Não tem sido nada uma boa prenda, mas sim um bom desastre? A Câmara já me atacou umas três ou quatro vezes, algo que nunca fiz. Nunca pedi que fizessem uma casa em minha homenagem. Têm usado argumentos que não são sérios, porque a verdade é que nunca me apresentaram nenhuma proposta? Pessoas sérias não fazem isso.

Está magoado?

Não, apenas indiferente. O meu acervo está aqui e assim continuará. Não escondo que gostaria que ficasse no Porto. É a minha cidade. Onde nasci, vivo e, provavelmente, morrerei. O Porto é uma cidade riquíssima, o que a maior parte das pessoas, incluindo as Câmaras, ignoram. Daqui partiu muita coisa, até o nome de Portugal. Para essa gente, nada disso existe. Há apenas o dinheiro e uma vontade de enganar o povo através de grandes festejos e árvores monumentais, em vez de socorrerem as pessoas necessitadas.

Sente-se desgostoso com a perda de protagonismo do Porto nas várias áreas da vida portuguesa, da economia à cultura?

Essa é uma questão muito pessoal sobre a qual prefiro não pronunciar-me. Mas, quando fiz "Porto da minha infância", tive o desejo de partilhar com as gerações mais jovens as minhas memórias particulares sobre uma cidade que já não existe.

É cada vez mais difícil fazer cinema?

Tenho a minha concepção de cinema e estou seguro do que faço. As dificuldades prendem-se com os meios. Antes do 25 de Abril, apresentava-o orçamento e, em caso de aprovação, o Estado subsidiava o filme na totalidade. Recentemente, a ministra da Cultura teve uma atitude muito simpática para comigo, garantindo-me a possibilidade de obtenção de apoio a todos os filmes que faça. Mas essa ajuda equivale a pouco mais de um terço da verba necessária. Sinto que precisava de viver mais 50 anos para concretizar todos os projectos que tenho. Se tivesse os meios, não me custava nada fazer dois filmes por ano. Ideias não me faltam, seja através de projecto escritos por mim ou por grandes escritores.

Mas o seu prestígio abre muitas portas...

No estrangeiro, sim, mas, mesmo aí, as coisas estão mais difíceis. O desenvolvimento do vídeo e demais evoluções - já se filma com telemóveis - veio dificultar em muito o modo tradicional de fazer cinema. Basta ver que já não há salas no Porto. Esqueceram-se de algo tão simples como fazer parques de estacionamento. Leva-se o carro mas não há lugar para estacionar. Até no Batalha, onde foi criada a primeira sala de cinema em Portugal, isso acontece. É isso que mata o cinema, porque acaba por ser mais fácil ficarmos por casa e abrirmos a televisão ou o vídeo. Nem precisamos de sair da cadeira.


Estará o cinema condenado?

O teatro é mais rico. Os actores estão lá, em carne e osso. No cinema, só está a personagem. O actor já não se encontra lá quando o filme é exibido. O cinema é complementar mas tem uma vantagem perdura no tempo. Se houvesse cinema no tempo áureo das tragédias gregas saberíamos como elas eram. Como não há, apenas calculamos como seriam.


Com a recente morte de Bergman e Antonioni, sente-se um dos derradeiros representantes do cinema de autor?

Sou apenas representante de mim mesmo. Mas não me sinto só, porque há outros colegas meus sérios e competentes, embora possam fazer outros tipos de cinema. Já o José Régio, um homem extraordinário e hoje um tanto esquecido, dizia que a originalidade de um artista reside na sua personalidade. Veja-se o que se passava no Renascimento. À primeira vista, todos os artistas pintavam o mesmo, fossem meninos ou Cristos. O que os distinguia, então? A personalidade, ou seja, a maneira como pintavam. Sinto que pertenço a uma deontologia cinematográfica que recusa mostrar o lado íntimo. Só filmo o que é público, embora possa sugeri-lo. É também por isso que admiro tanto o Luis Buñuel.

* publicado pelo Jornal de Noticias de Lisboa.

4 Comentários

Rodrigo Cássio disse...

Cineasta único e original. Além disso, consciente de si e da sua arte. Muito bom ler o que ele diz ao valorizar a crítica. É necessário respeitar o grande Manoel de Oliveira.

Lisandro Nogueira disse...

Realmente ele é singular e muito bom. Manoel, como o chamam em Portugal, Rodrigo, é excelente.

Herondes Cezar disse...

Mestre Lisandro,
Já faz perto de 30 anos, numa mostra de filmes portugueses no Cine Brasília, vi o documentário "Douro, Faina Fluvial", que achei simplesmente extraordinário. Fiquei a pensar que, se aquele diretor tivesse feito mais filmes, certamente seriam muito bons. Na mostra, havia apenas outro filme interessante, cujo título, "Dina e Django", remetia ao imaginário dos faroestes, embora fosse um filme policial. O que mais me chanou a atenção, neste filme, foi o ator principal, fisicamente frágil mas com um vozeirão maravilhoso. Eu, que tinha um elepê de poemas de Fernando Pessoa declamados por Sinde Filipe, fiquei encantado com o fato de os atores portugueses serem bem-dotados de voz. Nos créditos finais do filme, uma surpresa: o nome do ator era Sinde Filipe. E eu imaginando que, com aquela voz, ele tivesse o porte de um gigante.
Abraços

Lisandro Nogueira disse...

Olá Herondes, sua memória é espetacular. que bom!! Gosto do cinema de Manoel de Oliveira. Conhecemos pouco os cinemas pelo mundo.

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