Godard e o movimento do mundo*
______
Rodrigo Cássio*
Antes de tudo, o cinema é movimento. Quando o pioneiro francês Louis Daguerre inventou a técnica da fotografia, em 1835, o cinema ainda não estava lá. Mas no final daquele mesmo século, também na França, uma contribuição decisiva o tornaria possível. A máquina de filmar dos irmãos Lumière, batizada de cinematógrafo, marcou 1895 como o primeiro ano do cinema. Tudo muito rápido, no mesmo século XIX. Era o começo de um tipo de criação que se tornaria, no desenrolar das décadas seguintes, um dos principais meios expressivos da civilização.
O movimento como técnica, eis a fórmula indispensável de um filme. Certo? Não exatamente. Pois o cinema não é movimento apenas pela ilusão movediça que provoca nos olhos e na mente do espectador. A banalização das imagens nos acostumou a acreditar que a técnica é a geradora do movimento. Mas não é. O movimento está no mundo, antes de estar na imagem, e o que o cinema faz é servir-se dele. A tarefa do filme não é a técnica (essa já está pressuposta). A sua tarefa é dar sentido ao movimento do mundo.
O diretor francês Jean-Luc Godard, em Filme Socialismo, sinaliza essa diferença para com os conterrâneos Daguerre e Lumière. Ao contrário deles, Godard não é propriamente um inventor de imagens, mas de sentidos. O seu interesse é a técnica, mas na medida em que ela é objeto da reflexão sobre o mundo – aquele onde as coisas se movem. Experiente, do alto dos seus 80 anos, não é a primeira vez que Godard faz isso.
Na verdade, é o que ele sempre fez: colocou o cinema em sintonia com a História, buscando uma arte de rara autoconsciência quanto ao seu lugar na cultura de massas. Não há ingenuidade diante do cinema-entretenimento, das formas industriais que visam o grande público e o lucro dos produtores. Em Filme Socialismo, portanto, as imagens são um resultado de relações interessadas que não poderiam, de modo algum, ficar ocultas para o espectador.
Ao investigar essas relações, o movimento do mundo é devolvido ao cinema, figurado no balanço do mar ou nos ruídos do vento contra o microfone. Como diz em certo momento o narrador: trata-se de “colocar a realidade dentro da realidade”.
Neste filme, como em toda a obra de Godard da última década, o cineasta não é tanto aquele que cria novas imagens, mas sim aquele que organiza as imagens disponíveis aos homens. E elas são muitas. O filme é socialismo, porque as imagens são convenções sociais, elas nos pertencem. De certo modo, aliás, nós é que passamos a pertencer a elas, motivo pelo qual poderíamos nos espantar todos os dias.
Mas não é de espantos que a sociedade da técnica se arma, envolvendo-nos como aos personagens pouco comunicáveis de Godard. A disponibilidade do que é visto só poderia explicar o movimento se contornasse o turbilhão de estímulos descartáveis que nos atingem. Dentro de um navio, então, Filme Socialismo utiliza as câmeras de vigilância. São imagens gratuitas que se contaminam de sentido tão logo o artista as reposiciona na ordem da visibilidade. Godard nos lembra, por exemplo, que dois gatos rosnando podem ser um coisa, quando aparecem de repente no quadro do filme, e outra bem diferente na tela de um computador. Se acrescentamos uma informação que desloca esses gatos alguns milênios no tempo, ainda um novo sentido se impõe. O registro da visão é só o ponto de partida, o começo de algo. Filme Socialismo é um constante revirar-se das imagens e dos conceitos que as poderiam definir.
A provocação é sutil. Numa narrativa fragmentada, em que pouca coisa é disposta de modo linear, Godard procura angustiadamente por alguma linearidade na trajetória do Ocidente. O que ele encontra, mais uma vez, são as imagens em dissonância com os conceitos. O Oriente no Ocidente, e vice-versa; são as imagens que o demonstram.
Filme Socialismo contradiz toda uma filosofia da história de caráter eurocêntrico. Em uma das cenas mais diretas da obra, uma personagem afirma que a AIDS é apenas mais um instrumento para macular o continente africano. A resposta que recebe é incisiva: a luz existe onde há escuridão. O Iluminismo é controverso. Na metáfora do rápido diálogo, uma defesa franca da dialética. O mundo, afinal, é movimento.
Questões como essas estão reunidas em Filme Socialismo, cuja geografia mistura personagens de diversas origens e línguas neste navio tão semelhante ao concebido por Manoel de Oliveira, cineasta português, em Um Filme Falado (2003). Duas obras-primas do cinema contemporâneo, assinadas por dois artistas maduros que viveram muitas vicissitudes no seu ofício – até o ponto em que, câmeras em punho, a nossa escrita passou a se realizar com as imagens.
No século XXI, estamos muito além do que Daguerre e Lumière imaginaram. A melhor suspeita ainda é a de José Saramago, outro talentoso português, em entrevista pouco antes de falecer. O escritor pergunta: não estaríamos, afinal, em uma regressão para o grunhido? Godard, o cineasta, responde: tudo depende de nós mesmos. Tudo depende da nossa disposição para ver as imagens do mundo com outros olhos; ou, confirmando Saramago por meio dos bichanos que rosnam em Filme Socialismo, da nossa aptidão para “reaprender” a língua dos gatos.
* O Cineclube Cascavel e Cinemas Lumière promovem, na próxima terça-feira, dia 22, 19h, no cinema Lumière do Shopping Bougainville (Goiânia), uma sessão especial com Filme Socialismo, de Jean-Luc Godard.
5 Comentários
Assim como o filme não entendi o texto.
êpa, escreveu para quem esse texto. Nem filme e nem texto. Só para os entendidos mesmo, os inteligentes. Meu deus!!
Se vocês, Emiliano e Edgar, são estudantes, fico com pena. Perdem a oportunidade de abrir a cabeça fechada e sertaneja. Se abram, vejam filmes que iluminam. É uma perda de tempo ter que ler coisas de jovens da cabeça oca,
Professor Lisandro, o senhor tem uma paciência de Jô. Eu chegaria até a deletar.
O texto é pertinente e de acordo com o filme do Godard. Rodrigo procura mostrar a importância de um cineasta singular e preocupado com o cinema de invenção.
Os mais jovens poderiam mirar nos cinemas mais instigantes. Ganhariam bastante e poderiam obter uma formação melhor.
Terrific work! This is the type of information that should be shared around the web. Shame on the search engines for not positioning this post higher!
nolvadex
Postar um comentário
Deixe seu comentário abaixo! Participe!