segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

"Filme socialismo" (em cartaz)

Godard e o movimento do mundo*


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Rodrigo Cássio*

Antes de tudo, o cinema é movimento. Quando o pioneiro francês Louis Daguerre inventou a técnica da fotografia, em 1835, o cinema ainda não estava lá. Mas no final daquele mesmo século, também na França, uma contribuição decisiva o tornaria possível. A máquina de filmar dos irmãos Lumière, batizada de cinematógrafo, marcou 1895 como o primeiro ano do cinema. Tudo muito rápido, no mesmo século XIX. Era o começo de um tipo de criação que se tornaria, no desenrolar das décadas seguintes, um dos principais meios expressivos da civilização.

O movimento como técnica, eis a fórmula indispensável de um filme. Certo? Não exatamente. Pois o cinema não é movimento apenas pela ilusão movediça que provoca nos olhos e na mente do espectador. A banalização das imagens nos acostumou a acreditar que a técnica é a geradora do movimento. Mas não é. O movimento está no mundo, antes de estar na imagem, e o que o cinema faz é servir-se dele. A tarefa do filme não é a técnica (essa já está pressuposta). A sua tarefa é dar sentido ao movimento do mundo.

O diretor francês Jean-Luc Godard, em Filme Socialismo, sinaliza essa diferença para com os conterrâneos Daguerre e Lumière. Ao contrário deles, Godard não é propriamente um inventor de imagens, mas de sentidos. O seu interesse é a técnica, mas na medida em que ela é objeto da reflexão sobre o mundo – aquele onde as coisas se movem. Experiente, do alto dos seus 80 anos, não é a primeira vez que Godard faz isso.


Na verdade, é o que ele sempre fez: colocou o cinema em sintonia com a História, buscando uma arte de rara autoconsciência quanto ao seu lugar na cultura de massas. Não há ingenuidade diante do cinema-entretenimento, das formas industriais que visam o grande público e o lucro dos produtores. Em Filme Socialismo, portanto, as imagens são um resultado de relações interessadas que não poderiam, de modo algum, ficar ocultas para o espectador.
Ao investigar essas relações, o movimento do mundo é devolvido ao cinema, figurado no balanço do mar ou nos ruídos do vento contra o microfone. Como diz em certo momento o narrador: trata-se de “colocar a realidade dentro da realidade”.


Neste filme, como em toda a obra de Godard da última década, o cineasta não é tanto aquele que cria novas imagens, mas sim aquele que organiza as imagens disponíveis aos homens. E elas são muitas. O filme é socialismo, porque as imagens são convenções sociais, elas nos pertencem. De certo modo, aliás, nós é que passamos a pertencer a elas, motivo pelo qual poderíamos nos espantar todos os dias.

Mas não é de espantos que a sociedade da técnica se arma, envolvendo-nos como aos personagens pouco comunicáveis de Godard. A disponibilidade do que é visto só poderia explicar o movimento se contornasse o turbilhão de estímulos descartáveis que nos atingem. Dentro de um navio, então, Filme Socialismo utiliza as câmeras de vigilância. São imagens gratuitas que se contaminam de sentido tão logo o artista as reposiciona na ordem da visibilidade. Godard nos lembra, por exemplo, que dois gatos rosnando podem ser um coisa, quando aparecem de repente no quadro do filme, e outra bem diferente na tela de um computador. Se acrescentamos uma informação que desloca esses gatos alguns milênios no tempo, ainda um novo sentido se impõe. O registro da visão é só o ponto de partida, o começo de algo. Filme Socialismo é um constante revirar-se das imagens e dos conceitos que as poderiam definir.


A provocação é sutil. Numa narrativa fragmentada, em que pouca coisa é disposta de modo linear, Godard procura angustiadamente por alguma linearidade na trajetória do Ocidente. O que ele encontra, mais uma vez, são as imagens em dissonância com os conceitos. O Oriente no Ocidente, e vice-versa; são as imagens que o demonstram.

Filme Socialismo contradiz toda uma filosofia da história de caráter eurocêntrico. Em uma das cenas mais diretas da obra, uma personagem afirma que a AIDS é apenas mais um instrumento para macular o continente africano. A resposta que recebe é incisiva: a luz existe onde há escuridão. O Iluminismo é controverso. Na metáfora do rápido diálogo, uma defesa franca da dialética. O mundo, afinal, é movimento.


Questões como essas estão reunidas em Filme Socialismo, cuja geografia mistura personagens de diversas origens e línguas neste navio tão semelhante ao concebido por Manoel de Oliveira, cineasta português, em Um Filme Falado (2003). Duas obras-primas do cinema contemporâneo, assinadas por dois artistas maduros que viveram muitas vicissitudes no seu ofício – até o ponto em que, câmeras em punho, a nossa escrita passou a se realizar com as imagens.


No século XXI, estamos muito além do que Daguerre e Lumière imaginaram. A melhor suspeita ainda é a de José Saramago, outro talentoso português, em entrevista pouco antes de falecer. O escritor pergunta: não estaríamos, afinal, em uma regressão para o grunhido? Godard, o cineasta, responde: tudo depende de nós mesmos. Tudo depende da nossa disposição para ver as imagens do mundo com outros olhos; ou, confirmando Saramago por meio dos bichanos que rosnam em Filme Socialismo, da nossa aptidão para “reaprender” a língua dos gatos.

* O Cineclube Cascavel e Cinemas Lumière promovem, na próxima terça-feira, dia 22, 19h, no cinema Lumière do Shopping Bougainville (Goiânia), uma sessão especial com Filme Socialismo, de Jean-Luc Godard.

5 Comentários

Edgar Reis - Puc - jornalismo. disse...

Assim como o filme não entendi o texto.

Emiliano Cordeiro - UEG disse...

êpa, escreveu para quem esse texto. Nem filme e nem texto. Só para os entendidos mesmo, os inteligentes. Meu deus!!

Elaine Camargo - ex-UNB, tá bom assim... disse...

Se vocês, Emiliano e Edgar, são estudantes, fico com pena. Perdem a oportunidade de abrir a cabeça fechada e sertaneja. Se abram, vejam filmes que iluminam. É uma perda de tempo ter que ler coisas de jovens da cabeça oca,

Professor Lisandro, o senhor tem uma paciência de Jô. Eu chegaria até a deletar.

Lisandro Nogueira disse...

O texto é pertinente e de acordo com o filme do Godard. Rodrigo procura mostrar a importância de um cineasta singular e preocupado com o cinema de invenção.

Os mais jovens poderiam mirar nos cinemas mais instigantes. Ganhariam bastante e poderiam obter uma formação melhor.

Anônimo disse...

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