Complexidade na medida certa
Camila Vieira*
Ao lado de atuais cineastas norte-americanos que merecem ser apreciados com atenção - como James Gray e David Fincher, só para citar alguns -, o veterano Clint Eastwood certamente é o que melhor herdou os códigos do cinema clássico norte-americano. A cada filme, torna-se mais evidente o quanto Eastwood acredita na força de seus personagens e dos dramas que inventa, bem como na maneira sutil de operar uma determinada forma de decupagem tradicional.
No entanto, nenhum desses elementos consegue apagar o próprio estilo de Eastwood como cineasta, principalmente em A Troca.Eastwood assina a direção, a produção e a trilha sonora deste longa-metragem, que narra o drama de Christine Collins, uma mãe solteira que, na década de 1920 e 1930, sofre com o desaparecimento do filho e, logo em seguida, se vê vítima da irresponsabilidade e da negligência do Departamento de Polícia de Los Angeles na resolução do seu caso.
Diante de um argumento tão banal como este - ainda mais com a marca clichê do "a true story" (uma história verídica) -, o que faz de A Troca um filme que emociona e que se diferencia de um mero melodrama de época? Com certeza, não é a interpretação de Angelina Jolie, que recebeu uma indicação ao Globo de Ouro de melhor atriz pelo papel, tampouco sua chance de também ser indicada ao Oscar. Acredite: Jolie não merece todo esse crédito.Talvez o grande mérito de A Troca seja sua inadequação a um determinado gênero. Se os mais apressados o classificam amplamente como drama, os mais cuidadosos percebem as inúmeras modulações narrativas do filme, sobretudo as transformações dos temas do roteiro.
A Troca se apresenta como um típico drama familiar, logo depois, desenvolve-se como uma espécie de filme-denúncia acerca da inoperância das instituições e do peso da injustiça sobre os indivíduos, em seguida, torna-se um thriller, depois drama de tribunal, depois volta a ser melodrama... Com essas constantes variações, Eastwood faz de seu filme uma estrutura complexa, mas ao mesmo tempo enxuta naquilo que pretende obter a cada cena construída.
Em A Troca, o estilo eastwodiano é facilmente reconhecido. Temos a crítica voraz às instituições, a defesa ao cidadão comum cuja vida é destroçada pelo sistema, o lado perverso do ser humano exposto sem qualquer tipo de sensacionalismo, a possibilidade de sobrevivência e de esperança apesar da morte do outro. Eastwood demonstra mais uma vez que é o cineasta da precisão e do rigor, ao fazer cinema apenas com o que é necessário.
* A Camila tem um blog e solicita aos aos interessados visitá-la visando a troca de idéias: imagem_em_movimento.blogspot.com
* Jornalista e mestranda em comunicação da Universidade Federal do Ceará.
18 Comentários
O filme "A troca" está em cartaz nos cinemas Lumière, Cinemark, Goiânia Shopping e Flamboyant.(Pedro Vinitz)
fiquei interessado depois deste artigo, já que o trailer é bem desanimador. parece um dramalhão mesmo...
falando nisso, vi Gomorra. como tinha acabado de chegar do Rio onde subi o morro (para ouvir jazz. acredite se quiser), achei pinto, como dizia o Francis. aquilo ali só impressiona europeu, acho.
Olá João, diga quais os motivos para não ter gostado de Gomorra. No post publicado aqui no blog, um crítico português faz boas considerações e os comentários, em geral, compartilham com sua desaprovação. (Lisandro)
Eu vi hoje "A troca", com meus dois filhos e nós gostamos muito. O Filme é muito bem feito e consegue sim ser um épico.
Para mim o problema de "A troca" é que não nos convida a pensar, pelo contrário, nos entrega a reflexão já toda pronta e tudo o que nos sobra é o convite a sofrer com a história.
Talvez eu diria que seja exatamente o oposto de dogville por exemplo... Só para fazer uma comparação.
E problema disso é que depois de algumas semanas, no máximo alguns meses você já não pensa mais no filme, nem no tema, muito menos tem o sofrimento (ainda bem!).
Enquanto no oposto, como Dogville, onde a reflexão é sua também, você jamais esquece, logo te transforma..
Camila e a quem mais possa interessar-se pelo tema,
Por que existe "a marca clichê do 'a true story' (uma história verídica)" e isso é motivo para diminuir um tipo de cinema, enquanto, se o filme autodenominar-se "cinema-verdade", dispensar o aprofundamento do trabalho artístico, acreditar numa contradição em termos que é a chamada "estética imanente" e seu autor sair por aí falando em "realismo", "autenticidade" etc., isso pode ser visto como algo Bom, Virtuoso?
José Teixeira,
A sua pergunta é uma exclusão de meio termo. Não tem resposta - porque, no fundo, não tem pergunta.
Acho que há muitas coisas que "diminuem" um projeto de cinema como o de Eastwood, por mais bem acabado que ele seja. O recurso a clichês, sem dúvida, é um peso contra. Ou será que os clichês foram elevados a princípios artísticos da mais alta qualidade?
Hoje, se o que se quer é um "resgate" dos códigos clássicos, eu só vejo relevância em fimes como um Angel, de François Ozon. Ser clássico e não ser. Ser clássico, mas apurado, na própria absorção de uma forma fílmica; enfim, ser maneirista, como Ozon. Ou então abandonar de vez essa obediência, que, todos sabemos, é muito mais de ordem econômica que expressiva.
Ainda não vi "A Troca", logo, não posso ir longe no comentário. Agora, ser "o mais clássico entre os modernos" - como costumam chamar o Eastwood -, a meu ver, é estar um tanto quanto atrasado. Se não para o grande público, que sempre amou os clichês, ao menos para a arte que realmente importa: a que consegue traduzir em forma e conteúdo os problemas do presente.
Bem, muitos comentários sobre A Troca... Como escrevi o texto, sinto-me na tarefa de responder alguns.
João Ângelo - O trailer - feito pra vender o filme - é bem dramalhão mesmo.
Belém Neto - O que justamente Clint Eastwood não faz é deixar qualquer tipo de "mensagem" muito clara. A Troca não é um filme-tese, como é o caso de Dogville, que me parece ser bastante moralista e conservador e apresenta um ponto de vista sobre o mundo bastante marcado por esse aspecto.
José Teixeira - A opção de avisar ao espectador de que determinado filme de ficção é inspirado em uma história real me parece ser mais uma jogada de marketing para atrair um determinado tipo de público (veja a explosão de filmes que usam esse recurso, nos últimos anos) do que necessariamente algo que contribui para a construção diegética do filme. A discussão aqui pouco tem a ver com o "cinema-verdade", ou com o realismo.
Rodrigo - Não acho que Eastwood seja um cineasta clássico. Ele usa os códigos do cinema clássico, mas consegue ser contemporâneo, porque lida com os temas de seu tempo. Dizer que A Troca é "um Eastwood menor", como disse a Isabela Boscov, também não contribui em nada para o debate.
Para todos - Essa resenha foi publicada originalmente no blog imagem_em_movimento.blogspot.com. Aguardo o comentário de vcs lá.
Rodrigo,
você no primeiro momento me deixou feliz: dirigi minha pergunta à Camila e a quem mais "possa interessar-se pelo tema", e apareceu alguém interessado, você. Mas, surpreendentemente, seu comentário negou que houvesse ali uma pergunta. É chato ser negado como interlocutor, mas, de qualquer forma, você ofereceu uma contribuição, no campo de seu gosto pessoal, e isso é o mais importante – que haja contribuições – para o bem do blog. Só digo uma coisa a respeito do início de sua intervenção: não necessariamente o que admite meio termo é bom, ou interessante... Creio que mais importante que buscarmos meios termos (ou absolutos radicais...) é verificarmos se há (e até que ponto há) ou não razão numa manifestação de pensamento.
Voltando brevemente aos termos de meu comentário (em forma de pergunta) a um único aspecto do artigo de Camila, eu não disse que discordo da afirmação dela (na verdade, concordo totalmente; em nada se valoriza um drama como, por exemplo, "Romeu e Julieta" ou um romance como "Madame Bovary", se soubermos que eles ocorreram na "vida real"), apenas digo que a pretensão, que vem desde Dziga Vertov (com muitos seguidores, ainda que usando de outras argumentações, passando pelos realismos e neo-realismos, cinemas-verdade), de abolir o ficcional, o artístico, em nome de uma "verdade" que se auto-revela, além de não produzir bons frutos em termos de obras, presta-se à mistificação.
Camila,
fiz um comentário focado na intervenção do Rodrigo Cássio sem ver que você endereçara uma resposta a minha pergunta (e você a entendeu como uma pergunta. Obrigado!). De fato, não se trata de cinema-verdade nesse filme, e em qualquer outro de Clint Eastwood, mas direcionei a reflexão de quem lesse seu artigo para a questão da busca de "verismos" e realismos, por achar que há uma relação entre os dois usos da verdade, e porque no blog às vezes se manifesta uma simpatia, a meu ver equivocada, pelo realismo.
Oi Camila,
Eu também não acho que o Eastwood é um cineasta clássico. Até porque isso é impossível. Mas já li pelo menos em dois críticos a reverberação da idéia de que ele é o mais "clássico dos modernos". É nesse sentido que vale o comentário: ele é um cineasta bastante tributário de uma maneira de se fazer cinema que é própria do cinema clássico.
Quanto a ele lidar com temas contemporâneos, isso é patente. Mas fica a pergunta: por que usar uma forma tão arraigada nas décadas de 30/40/50 para expressar um mundo que mudou tanto?
E é nesse sentido que eu não acredito em um projeto de cinema como o de Eastwood. Falta a forma adequada para lidar com os nossos temas do presente (incluindo o autoritarismo dos EUA, que você reparou como uma crítica lançada por A Troca).
Oi José Teixeira,
Eu não questionei a maneira como você fez a pergunta para negar-lhe como interlocutor. O contrário disso!
Acontece que a maneira como você apresentou as alternativas me pareceu inadequada. Se eu simplesmente aceitasse a pergunta, tal como você a formulou, eu estaria aceitando a sua maneira de apresentar os conceitos. E isso eu não poderia fazer, pois é justamente o seu uso dos conceitos que me leva a discordar e a querer intervir.
Seria impossível dialogar, de fato, se eu começasse o meu comentário respondendo a sua pergunta. Pois eu não a reconheço como uma pergunta válida (não é nada pessoal, é óbvio; trata-se apenas de problematizar os conceitos e o lugar de cada um deles).
Logo, eu concordo totalmente com você, quando diz que o que importa é "verificarmos se há (e até que ponto há) ou não razão numa manifestação de pensamento."
Bem, o problema que vejo na pergunta é: será que temos, de fato, o "ficcional" (Griffithiano?) de um lado, e o realismo vertoviano do outro? O primeiro sempre negativizado, e o segundo sempre positivado?
Até certo ponto, eu aceito a sua questão, e percebo que ela se justifica. Mas discordo, principalmente, quando você inclui na pergunta que o realismo vertoviano é uma contradição em termos. E o ilusionismo do cinema ficcional/clássico/griffithiano? Ele também não é uma contradição em termos? Afinal, trata-se de um discurso que criou códigos para anular a sua própria instauração como discurso.
É esse meio termo que, a meu ver, faltou na sua pergunta. O que a tornou, digamos, capiciosa. Um pouco como uma armadilha.
Para continuar o diálogo (por favor, entenda-o assim, como diálogo): Por que você afirma que o realismo de origem vertoviana não produziu bons frutos em termos de obras? Eu discordo completamente. Não só por gosto, mas por razões estéticas, pensando as possibilidades e os limites do cinema como uma expressão artística.
José Teixeira (continuando...),
Se eu bem entendi o que você chama de "contradição em termos" do cinema "imanente", estamos falando do cinema direto, para o qual o termo "realismo" é especialmente importante. Justamente esse é o cinema que pretende atingir o real, revogando as intervenções do artista. Tal contradição em termos pode ser denunciada pelo cinema verdade, que mostra o aparato para incluir a intervenção. Um realismo de meios, e não de fins.
Creio que a contradição intrínseca ao cinema direto é semelhante à que vejo no cinema ilusionista/ficional. A propósito, o lance da "true story" cabe muito bem nesse aspecto. Afinal, é o mundo que se dá a conhecer (no âmbito da linguagem ilusionista, tanto faz se o filme se diz apenas "baseado" em fatos reais; ele é apresentado de maneira ilusória, com atuações naturalistas de atores que se envolvem em tramas relativas ao nosso dia-a-dia).
Logo, podemos igualmente ir contra a ala-Griffith munidos com o cinema verdade.
Em certo sentido (quase partindo para o extra-fílmico), poderíamos até dizer que o espectador capaz de se dar conta do jogo ilusionista de faz-de-conta desautoriza a idéia de que esse cinema é contraditório em termos. Mas, se fosse o caso, isso não valeria, também, para o espectador do cinema direto?
Ou, se eu não estiver perguntando bem, onde está, afinal, a contradição?
Aqui, estou tentando ter uma reação mais produtiva ao seu comentário inicial. Mas a minha primeira resposta também teve essa intenção. Seus comentários são provocantes. Eu só poderia responder-lhe também provocando, no melhor sentido do termo!
José Teixeira,
Pra fechar: o que mais importa no meu último comentário é que, ao mesmo tempo em que podemos ir contra a ala-Griffith, recorrendo ao cinema verdade, o cinema direto, por sua vez, possui fundamentos que não estão muito distantes desta ala-Griffith. Em síntese, no cinema que você chama de ficcional/artístico, também há um realismo em jogo!
Oi José Teixeira,
A inesgotável disputa no cinema entre "realismo" e "ficcional" me parece um pseudo-problema. Um filme é em si mesmo a criação de um mundo (porque sempre agrega valores) e não se reduz a uma mera representação de algo externo a ele.
José Teixeira e Camila,
O último comentário de Camila foi perfeito. Em poucas palavras, é isso mesmo. Lembrei-me do Bazin, que é, ao mesmo tempo, realista e "ficcional". Nessa via, ele apresenta a idéia de um poder revelatório do cinema em um âmbito bastante singular, que não exclui a narratividade nem o tratamento artístico do que é visto na tela. Enfim, não há nada, a priori, que separe o realismo e a ficcionalidade.
Postar um comentário
Deixe seu comentário abaixo! Participe!