sábado, 29 de maio de 2010

Robin Hood: flechada publicitária (em cartaz)

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Robin Hood

Fabricio Cordeiro*

Na mais recente parceria entre Russell Crowe e Ridley Scott, o ator interpreta Robin Hood antes dele se rebelar contra o reinado inglês e virar um fora-da-lei de papel pregado em tronco de árvore. Inícios de lendas despertam interesse, mas essa dupla transforma filme personagem numa espécie de Robin Maximus Hood. De repente, no meio da projeção, você percebe que é mais enxergar Robin Hood em Kevin Costner do que em Russell Crowe, e isso diz muita coisa.

Como tem sido tradição nos últimos anos, Robin Hood foi a grande produção que serviu de abertura para o Festival de Cannes. Taí uma sessão que gostaria de acompanhar, pois, no filme, franceses são escrotinhos, contratam traíras e depois se fodem. Mas o vilãozão mesmo é o inglês Godfrey (Mark Strong, presença), quase um Darth Vader medieval sob sua capa preta. Ei, se um cara não se importa em comer uma ostra com sangue de outra pessoa, ele só pode representar o chefão final.

Temos aqui a típica produção simplesmente GRANDE que se comporta como um paquiderme mecânico, desde batalhas inexpressivas programadas no automático às várias tentativas daquele humor de confeitaria, bem comum na Hollywood pejorativa. Enquanto Robin parece andar acompanhado pelos Três Patetas, o filme encara parte da relação com Marion como se fosse uma sitcom, oficializando o casal com um “eu te amo” pronto depois de cozinhar por três minutos (mas sem o pozinho do tempero). Alguém precisa avisar a Cate Blanchett que ela é melhor que essas coisas que ela tem feito.

Os épicos de Scott parecem ter saído de uma página de classificados. A impressão geral é que dá pra misturar cenas de Gladiador, Cruzada e Robin Hood numa sala de montagem e o resultado sempre será essa feira de decoração de interiores medieval. É um diretor nascido na publicidade, assim como seu irmão Tony, capaz de usar filtro azul pra coar café. Esse apelo visual digno de anúncio transborda na batalha final, fazendo de Robin Hood o mais longo comercial da Nike. A última flechada, filmada com perfeição publicitária, pede um “Just Do It”.

* Fabricio Cordeiro é membro do projeto de extensão "Cine-UFG, debates"

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quinta-feira, 27 de maio de 2010

A máquina do mundo (com lucidez, sem ilusões).

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Carlos Drummond de Andrade*


E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:

"O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.


Este poema foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno “
MAIS” (edição de 02-01-2000), publicado aos domingos pelo jornal “Folha de São Paulo”. Publicado originalmente no livro “Claro Enigma”, o texto acima foi extraído do livro “Nova Reunião”, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, pág. 300.

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terça-feira, 25 de maio de 2010

Cinema e jornalismo, filmes em cartaz: Cine-UFG.

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O jornalismo no cinema

Rute Guedes*


Heróis ou vilões, os jornalistas sempre tiveram um lugar cativo no cinema, como pode ser conferido na mostra Cinema e Jornalismo, que o Cine UFG, no Câmpus 2 da universidade, exibe a partir de hoje. Vários estilos e gêneros já tiveram a busca da notícia como parte ou enredo de filmes que marcaram época: produções brasileiras, clássicos da era de ouro de Hollywood e o cinema europeu autoral dos anos 70. Cineastas como Michelangelo Antonioni, Howard Hawks, Alexander Mackendrick, John Ford e Lúcia Murat voltaram seu olhar para o tema e têm seus filmes na programação, com curadoria do professor Lisandro Nogueira.

A mostra, que prossegue até 2 de junho, começa às 12 horas com A Embriaguez do Sucesso, de 1957. O filme, com direção de Alexander Mackendrick e estrelado pelos galãs Tony Curtis e Burt Lancaster, conta a história de um importante colunista de Nova York, J.J. Hunsecker, que tenta evitar o casamento da irmã com um músico de jazz. John Ford, um dos maiores mestres da história do cinema, dirigiu em 1962 O Homem que Matou o Facínora<, faroeste que começa com uma reveladora entrevista de um senador a um repórter durante um funeral numa pequena cidade dos EUA. No elenco, o ator mais emblemático do gênero, John Wayne.

Outro representante do cinema clássico dos EUA, o cineasta Howard Hawks dirigiu a comédia romântica Jejum de Amor. No filme, de 1940, Cary Grant interpreta o editor de um grande jornal de Chicago. Sua ex-mulher, uma repórter, está prestes a se casar novamente. Porém, antes disso, o editor quer que ela escreva uma grande reportagem. Ou, quem sabe, apenas impedir que a ex-mulher se case com outro.

Os bastidores do jornalismo político em Brasília são o tema de Doces Poderes, filme de Lúcia Morat sobre a relação entre a imprensa e o poder em meados dos anos 90. No longa, de 1997, Marisa Orth interpreta uma jornalista que chega a Brasília para assumir, durante o período eleitoral, a chefia da sucursal da principal rede de TV do País. O antigo diretor está deixando o cargo para chefiar a campanha de um jovem candidato a governador.

Passageiro: Profissão Repórter, filme de Michelangelo Antonioni de 1975, é um dos marcos da carreira do cineasta italiano. Jack Nicholson é um correspondente internacional que cobre um guerra na África. Quando ele se depara com um traficante de armas que foi assassinado, o repórter resolve se passar pelo morto.

* Rute Guedes é crítica de cinema do jornal O Popular - publicado em 25 de maio, 2010.

PROGRAMAÇÃO
Hoje12h – A Embriaguez do Sucesso
17h30 – O Homem que Matou o Facínora
Amanhã
12h – Jejum de Amor
17h30h – Doces Poderes
Quinta-feira
12h – A Embriaguez do Sucesso
17h30 – O Homem que Matou o Facínora
Sexta-feira
12h – Passageiro, Profissão Repórter
17h30 – A Embriaguez do Sucesso
31 de maio
12h – Jejum de Amor
17h30 – Passageiro, Profissão Repórter
1º de junho
12h – Doces Poderes
17h30 – Jejum de Amor
2 de junho
12h –  Passageiro, Profissão Repórter
17h30h –  Doces Poderes

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domingo, 23 de maio de 2010

CANNES 2010 - vencedores

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FÁBULA BUDISTA VENCE CANNES

Ana Paula Sousa*

Terminou hoje a 63ª edição do Festival de Cinema e Cannes. O filme "Lung Boonmee Raluek Chat", do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul, foi o grande vencedor da Palma de Ouro.

O filme trata de uma fábula budista que conta a história de um homem que decide passar seus últimos dias na selva, onde aparece para ele o fantasma da esposa morta e do filho desaparecido, este transformado em animal.
O diretor Weerasethakul já foi premiado em Cannes por "Tropical Malady", em 2001.



Lung Boonmee Raluek Chat
Cena do filme "Lung Boonmee Raluek Chat", que venceu a Palma de Ouro.
Uma das surpresas da premiação foi a divisão de prêmio de atuação entre Javier Bardem, pelo filme "Biutiful", e o italiano Elio Germano, de "La Nostra Vita".


Conheça os vencedores dos prêmios abaixo.
Palma de Ouro
"Lung Boonmee Raluek Chat", de Apichatpong Weerasethakul
Ator
Javier Bardem - "Biutiful"
Elio Germano - "La Nostra Vita"
Atriz
Juliette Binoche - "Copie Conforme"
Direção
Mathieu Amalric - "Tournée"
Roteiro
Lee Chang-Dong - "Poetry"
Curta-metragem
"Un Chienne d'Histoire", de Serge Avedikian
Camera d'Or
"Año Bisiesto"
Prêmio do júri
"Un Homme qui Crie", de Mahamat-Saleh Haroun
Grande Prêmio
"Des Hommes et des Dieux", de Xavier Beauvois

* Ana Paula repórte de cinema da FolhaSP.

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sábado, 22 de maio de 2010

O velho, o escritor e a "Humilhação" - entrevista com Philip Roth.

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O velho


Gilberto Tadday/Folha Imagem

O escritor americano Philip Roth, em seu apartamento, no bairro de Upper West Side, em Manhattan; autor lança "A Humilhação"

CRISTINA FIBE*
 No 12º andar de um prédio sem luxos no Upper West Side, em Manhattan, Nova York, um senhor de meias bicolores espia o elevador, porta entreaberta, à espera da reportagem.

Sozinho, Philip Roth, 77, recebe a Folha com um único pedido: não ser fotografado enquanto conversa. Pergunta que livro dele está sendo lançado no Brasil -"A Humilhação"-, e diz que precisa de um momento para se lembrar deste. Desde que a sua 30ª obra foi lançada nos EUA, em meados de 2009, Roth já escreveu outra, "Nemesis", que chega às livrarias em outubro.

O livro completa a série de quatro romances curtos da qual faz parte "A Humilhação". Para Roth, eles não se ligam "de maneira óbvia", mas "giram em torno de uma ameaça".
No livro que sai no Brasil, a ameaça é a perda do talento de um ator que não consegue mais subir ao palco. Ele envelhece sem exercer o ofício, com medo da morte e da solidão.

Conhecido por espelhar os personagens em si mesmo, Roth falou sobre os amigos que perdeu, a família que nunca construiu e o "desespero terrível" que é sentir "a ausência do talento". Leia abaixo os principais trechos da entrevista.



 
FOLHA - Em "A Humilhação", o protagonista é deprimido, desesperançoso. Quanto de você há no personagem?
PHILIP ROTH
- Quem me inspirou foi um ator britânico, Ralph Richardson [1902-1983]. Em determinado ponto, ele não conseguia encontrar o seu talento. Disse às pessoas: "Perdi meu talento. Se alguém encontrá-lo, tem as minhas iniciais. Favor devolver, possui valor sentimental" [risos]. Imaginei a partir disso. Sei o que é quando o talento parece ausente. Não acho que exista um escritor na Terra que nunca tenha sentido isso. Dá um desespero terrível, uma tristeza. É um talento diferente, mas também preciso interpretar. E houve momentos em que não pude.
FOLHA - Quando teve essa crise pela última vez?
ROTH
- Nesta manhã [risos]. Tenho tido uma boa jornada nos últimos dez, 15 anos. Escrevi livros a cada dois anos, às vezes com mais frequência. À exceção de um período entre 1962 e 1967, quando tinha 30 anos. Não conseguia escrever.
FOLHA - Como se define naquela época e hoje?
ROTH
- Meus joelhos não doíam tanto [risos]. Publiquei o meu primeiro livro em 1959, aos 26. Nos primeiros dez anos, é um aprendizado, você está ensinando a si próprio. É muito difícil para mim ler os livros dessa época. Eles me parecem, às vezes, muito mal escritos. Hoje, tenho confiança no meu trabalho.
FOLHA - O quanto leva a sério as críticas que recebe?
ROTH
- Se forem escritas por alguém com credenciais e cérebro, levo a sério. Mas isso é no máximo em 10%, 5% dos casos. Então leio, mesmo que seja um ataque. E machuca. Quando comecei, tinha a pele fina. Hoje, não tenho pele nenhuma.
FOLHA - "A Humilhação" é centrado no envelhecimento, na morte. São temas que lhe preocupam?
ROTH
- São incômodos. Por uma razão simples: nos últimos dois anos, seis dos meus amigos mais próximos morreram. É assombroso. E, se o seu amigo morre aos 83, e você tem 77, fica ao lado do túmulo, subtraindo e adicionando. "Tenho seis anos, o que farei com eles?" E aí você começa a ter problemas de saúde. Chega um mês em que precisa ver o médico três vezes. Antes, eram três vezes em três anos.

FOLHA - No livro, o protagonista envelhece e fica só. Como é a sua relação com a família?
ROTH
- Tive dois casamentos, um quando jovem, outro mais velho. Nunca tive uma família. O primeiro casamento, na época em que eu teria construído uma família, foi um pesadelo. Então passei pela vida sem isso. Não sinto falta. A única família que tive foi aquela na qual cresci. Sou o último, éramos quatro.
FOLHA - Você já disse que, se começasse de novo, não seria escritor.
ROTH
- É uma vida difícil. Você sempre precisa construir algo do nada, e coisas que convençam. O esforço é gigantesco. E a frustração é enorme.


* Publicada na FolhaSPaulo: 22.05.2010.

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sexta-feira, 21 de maio de 2010

Mordaça, ou, a poesia pura da música popular brasileira

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MORDAÇA

Paulo Cesar Pinheiro/Eduardo Gudin


TUDO O QUE MAIS NOS UNIU SEPAROU
TODO O QUE TUDO EXIGIU RENEGOU
DA MESMA FORMA QUE QUIS RECUSOU
O QUE TORNA ESSA LUTA IMPOSSÍVEL E PASSIVA 

O MESMO ALENTO QUE NOS CONDUZIU DEBANDOU
TUDO O QUE TUDO ASSUMIU DESANDOU
TUDO QUE SE CONSTRUIU DESABOU
O QUE FAZ INVENCÍVEL A AÇÃO NEGATIVA

É PROVÁVEL QUE O TEMPO FAÇA A ILUSÃO RECUAR
POIS TUDO É INSTÁVEL E IRREGULAR

E DE REPENTE O FUROR VOLTA
O INTERIOR TODO SE REVOLTA
E FAZ NOSSA FORÇA SE AGIGANTAR


MAS SÓ SE A VIDA FLUIR SEM SE OPOR
MAS SÓ SE O TEMPO SEGUIR SEM SE IMPOR
MAS SÓ SE FOR SEJA LÁ COMO FOR

O IMPORTANTE É QUE A NOSSA EMOÇÃO SOBREVIVA
E A FELICIDADE AMORDACE ESSA DOR SECULAR
POIS TUDO NO FUNDO É TÃO SINGULAR

É RESISTIR AO INEXORÁVEL
O CORAÇÃO FICA INSUPERÁVEL
E PODE EM VIDA IMORTALIZAR

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quinta-feira, 20 de maio de 2010

Manoel de Oliveira, 100 anos - entrevista

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 Quem é Manoel de Oliveira

Estreou no cinema como figurante no filme Fátima Milagrosa (1929) e como diretor no documentário Douro, Faina Fluvial (1931). Como ator, participou no filme A Canção de Lisboa (1934). Aniki-Bobó (1942), o seu primeiro longa-metragem, é uma das obras mais significativas do cinema português: história infantil, de um naturalismo poético extremamente bem desenvolvido, é precursora do neo-realismo italiano. Com O Pintor e a Cidade (1956), obteve a Harpa de Ouro do Festival de Cork (Irlanda). 
Em A Caça (1963), obra violenta e quase agressiva, consegue uma sutil interpretação entre o real e o simbólico. Em 1975, estreou Benilde ou a Virgem-Mãe, segundo a obra de José Régio, seqüência de O Passado e o Presente (1971). Os filmes Amor de Perdição (1978), Francisca (1981), Sob o Sol de Satã (1985, Prêmio da Crítica no Festival de Veneza, onde o diretor foi distinguido com o Leão de Ouro pelo conjunto de sua obra), O Meu Caso (1986) e Os Canibais (1987) vieram corroborar a opinião dos que o proclamam o maior cineasta português. Prosseguiu a sua obra com Non ou a Vã Glória de Mandar (1990), A Divina Comédia (1991), O Dia do Desespero (1992), Vale Abraão (1993), A Caixa (1994), O Convento (1995), Party (1996), Viagem ao Princípio do Mundo (1997), A Carta (1998), La Princesse de Clèves (1999). Foi homenageado no Festival de Cinema de Veneza em 1991.
Participou no filme de Wim Wenders Viagem a Lisboa (1994). Em 1994 recebeu o Prêmio David Donatello por sua carreira e o Prêmio Akira Kurosawa, no Festival de Cinema de São Francisco.


ENTREVISTA*

 Jornal de Notícias| Não há algo pernicioso em chegar à sua idade na plena posse das faculdades? Discute-se mais a longevidade do que o teor dos filmes que faz?

Manoel de Oliveira:  Isso não me inquieta. Mas admito que seja verdade. No Porto, mas também noutras cidades em Portugal e no estrangeiro, sou abordado por desconhecidos, novos e velhos, que possivelmente nunca terão visto os meus filmes.


Trocava esse carinho ou reverência por uma maior discussão sobre o seu trabalho?

Não é uma questão de trocar? Cada um tem a sua sina e o seu destino. A idade é um capricho. Fazer cinema é uma paixão, algo interior. Bem ou mal feitos, os filmes são uma vocação.


Desliga-se afectivamente de um filme mal o termina ou sente que ele só está concluído a partir do momento em que outros o vêem?

A crítica é indispensável. Mais importante ainda é um complemento. Por isso, o filme só está acabado depois de ser visto. Por algum público e de preferência pelos críticos. São eles que vão acabar o filme. Como há muito de inconsciente no trabalho de um artista, é o crítico que vai buscar esse lado, de que o artista nem se deu conta. Veja-se o caso de "Os Lusíadas". Alguém duvida que o livro não seja mais rico hoje, depois de ter sido examinado em diferentes épocas?


Já existem movimentações para assinalar o seu próximo aniversário, o 100º. Como gostaria de comemorá-lo?

É uma data íntima que sempre festejei em família. Agora, quase todos os amigos da minha idade, e também boa parte dos familiares, desapareceram? A juventude é um tempo extraordinário em que as pessoas desconhecem que estão verdadeiramente a viver. Só com o passar dos anos é que nos apercebemos dos momentos extraordinários já vividos.


A melhor prenda seria a abertura da Casa-Museu?

Não tem sido nada uma boa prenda, mas sim um bom desastre? A Câmara já me atacou umas três ou quatro vezes, algo que nunca fiz. Nunca pedi que fizessem uma casa em minha homenagem. Têm usado argumentos que não são sérios, porque a verdade é que nunca me apresentaram nenhuma proposta? Pessoas sérias não fazem isso.

Está magoado?

Não, apenas indiferente. O meu acervo está aqui e assim continuará. Não escondo que gostaria que ficasse no Porto. É a minha cidade. Onde nasci, vivo e, provavelmente, morrerei. O Porto é uma cidade riquíssima, o que a maior parte das pessoas, incluindo as Câmaras, ignoram. Daqui partiu muita coisa, até o nome de Portugal. Para essa gente, nada disso existe. Há apenas o dinheiro e uma vontade de enganar o povo através de grandes festejos e árvores monumentais, em vez de socorrerem as pessoas necessitadas.

Sente-se desgostoso com a perda de protagonismo do Porto nas várias áreas da vida portuguesa, da economia à cultura?

Essa é uma questão muito pessoal sobre a qual prefiro não pronunciar-me. Mas, quando fiz "Porto da minha infância", tive o desejo de partilhar com as gerações mais jovens as minhas memórias particulares sobre uma cidade que já não existe.

É cada vez mais difícil fazer cinema?

Tenho a minha concepção de cinema e estou seguro do que faço. As dificuldades prendem-se com os meios. Antes do 25 de Abril, apresentava-o orçamento e, em caso de aprovação, o Estado subsidiava o filme na totalidade. Recentemente, a ministra da Cultura teve uma atitude muito simpática para comigo, garantindo-me a possibilidade de obtenção de apoio a todos os filmes que faça. Mas essa ajuda equivale a pouco mais de um terço da verba necessária. Sinto que precisava de viver mais 50 anos para concretizar todos os projectos que tenho. Se tivesse os meios, não me custava nada fazer dois filmes por ano. Ideias não me faltam, seja através de projecto escritos por mim ou por grandes escritores.

Mas o seu prestígio abre muitas portas...

No estrangeiro, sim, mas, mesmo aí, as coisas estão mais difíceis. O desenvolvimento do vídeo e demais evoluções - já se filma com telemóveis - veio dificultar em muito o modo tradicional de fazer cinema. Basta ver que já não há salas no Porto. Esqueceram-se de algo tão simples como fazer parques de estacionamento. Leva-se o carro mas não há lugar para estacionar. Até no Batalha, onde foi criada a primeira sala de cinema em Portugal, isso acontece. É isso que mata o cinema, porque acaba por ser mais fácil ficarmos por casa e abrirmos a televisão ou o vídeo. Nem precisamos de sair da cadeira.


Estará o cinema condenado?

O teatro é mais rico. Os actores estão lá, em carne e osso. No cinema, só está a personagem. O actor já não se encontra lá quando o filme é exibido. O cinema é complementar mas tem uma vantagem perdura no tempo. Se houvesse cinema no tempo áureo das tragédias gregas saberíamos como elas eram. Como não há, apenas calculamos como seriam.


Com a recente morte de Bergman e Antonioni, sente-se um dos derradeiros representantes do cinema de autor?

Sou apenas representante de mim mesmo. Mas não me sinto só, porque há outros colegas meus sérios e competentes, embora possam fazer outros tipos de cinema. Já o José Régio, um homem extraordinário e hoje um tanto esquecido, dizia que a originalidade de um artista reside na sua personalidade. Veja-se o que se passava no Renascimento. À primeira vista, todos os artistas pintavam o mesmo, fossem meninos ou Cristos. O que os distinguia, então? A personalidade, ou seja, a maneira como pintavam. Sinto que pertenço a uma deontologia cinematográfica que recusa mostrar o lado íntimo. Só filmo o que é público, embora possa sugeri-lo. É também por isso que admiro tanto o Luis Buñuel.

* publicado pelo Jornal de Noticias de Lisboa.

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terça-feira, 18 de maio de 2010

Cinema e Jornalismo: mostra começa 25 de maio:Cine-UFG

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O Cine-UFG inicia no dia 25 de maio, terça-feira (de 25 de maio a 2 de junho) , a mostra de filmes “Cinema e Jornalismo”. Serão exibidos filmes estrangeiros e brasileiros de cineastas como Michelangelo Antonioni, Howard Hawks, Alexander Mackendrick, John Ford e Lúcia Murat. Sessões às 12 e 17:30h. (programação abaixo).
 

Cinema e Jornalismo

Lisandro Nogueira


Francis Bacon, em Novum organum, “aforisma 129”, alerta para a importância de três invenções: a imprensa, a pólvora e a bússola, “[...] pois alteraram a aparência e o estado do mundo inteiro” (Eisenstein, 1998). Sainte-Beuve (Pallares-Burke), advertiu que seria limitado qualquer estudo sobre a cultura européia no século XIX “sem levar em conta sua atividade jornalística”. Se essa observação já era válida naquele século, na atualidade, merece uma atenção redobrada. 

O jornalismo disseminou-se, ganhou prestígio, reportou os problemas da sociedade e, hoje, braço "esquerdo e direito" da Comunicação,  ainda  pauta a política e a cultura. Se já foi um apêndice do meio intelectual, resignado com a pecha de “obra menor”, é, agora, influente a ponto de submeter à vida cultural e política com  suas pautas. 

A história do jornalismo comprova sua ascensão como instrumento de poder. Mas seu caráter multifacetado, na atualidade, comprova as conseqüências nefastas desse processo de fragmentação para o jornalista e o jornalismo.
Quem melhor representa e compreende  o  jornalismo é o cinema.
Personagem de vários filmes, o jornalista é visto como a figura que melhor encarna as contradições da sociedade moderna e seu complexo sistema comunicacional. Ele é testemunha, facilitador e operador de ações entre as classes sociais, equilibra-se entre o público, o mercado e o Estado. Talvez por isso, e também por outros motivos, o jornalista constitua o personagem emblemático que oscila entre criar, ter identidade, mesmo que seja mínima, e seguir as normas do sistema de produção.
Será uma oportunidade ímpar conhecer filmes que mostram o jornalista, o jornalismo e as complexas relações destes com a sociedade e o Estado.

Programação 

25.05
12h – A embriaguez do sucesso
17:30h – O homem que matou o facínora
26.05
12h – Jejum de amor
17:30h – Doces poderes
27.05
12h – A embriaguez do sucesso
17:30h – O homem que matou o facínora
28.05
12h – Passageiro, profissão repórter
17:30 – A embriaguez do sucesso
31.05
12h – Jejum de amor
17:30 – Passageiro, profissão repórter
01.06
12h – Doces Poderes
17:30 – Jejum de amor
02.06
12h – Passageiro, profissão repórter
17:30h – Doces Poderes

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sábado, 15 de maio de 2010

O cinema da liberdade - Buñuel. (em cartaz)

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O cinema da liberdade

Carolina Soares*

“Fim à liberdade!”, sentencia o oficial francês, na primeira cena de O fantasma da liberdade. O caráter simbólico dessa cena diz muito da temática do filme e de toda a obra de Buñuel. É a sociedade burguesa que vemos retratada e ironizada nos filmes do diretor espanhol. A Revolução Francesa demarca a ascensão dos valores burgueses, que, para Buñuel, representam a censura, o moralismo, a sublimação da poesia, dos sonhos e desejos do ser humano. Portanto, o grito que proclama o fim da liberdade é o brado da burguesia, decretando que em seu seio não há lugar para ser livre.

Logo no começo do filme, Buñuel situa o espectador no espaço e no tempo, dando uma falsa impressão de continuidade, apenas para desconstruí-la nas cenas seguintes. O manifesto do cinema proposto pelos surrealistas determina que o espaço-tempo não deve seguir a trilha do princípio de realidade do cinema clássico, de tendência naturalista, mas reproduzir a articulação dos sonhos, caracterizada pela livre associação.

Inserindo o sonho no discurso cinematográfico, Buñuel – e outros diretores herdeiros de seu legado, como David Lynch – procura encontrar um cinema que seja a expressão de uma realidade mais profunda e abrangente, mais real do que o arremedo de realidade produzido pela verossimilhança da decupagem clássica. Os surrealistas defendem uma estética cinematográfica em que o concreto e o sonho se misturam, se completam, proporcionando uma visão integral da realidade, mais poética, mais subjetiva, ao incorporar às suas imagens a dimensão do desejo. Em outras palavras, os surrealistas buscam um cinema libertador.

Conforme entendem vários psicanalistas, como Freud e Arnheim, o cinema é a linguagem que tem maior afinidade com o material trabalhado pelo inconsciente. As “condições de representabilidade” que governam a expressão do desejo no sonho encontram no cinema o seu modelo mais próximo.

O cinema surrealista, ao imitar a articulação dos sonhos, a lógica de uma experiência que é o “preenchimento do desejo” por excelência, insere a dimensão do desejo na experiência cinematográfica, não por um simples processo de identificação e gratificação, mas pela ruptura manifesta na própria estruturação do filme, pela forma como a realidade é apresentada ao espectador. É o desejo de subversão da realidade afirmado através do onírico. O discurso surrealista é um ato poético de liberação em face das repressões sociais, subvertendo as convenções através do imaginário.

A linha de condução narrativa de O fantasma da liberdade é formada por um conjunto de situações aparentemente desconexas, que se interligam por meio de uma personagem em comum entre as sequências – o figurante de uma cena passa a ser o protagonista de outra. Mas todas elas servem ao mesmo propósito: denunciar as prisões a que estamos atados, prisões estas que se manifestam como convenções sociais. Um dos episódios mostra uma família sentada à mesa, conversando. Tudo muito normal, não fossem assentos sanitários em vez de cadeiras o que se vê ao redor dela. Quando sentem fome, os comensais vão até um compartimento fechado, o que seria um banheiro, e lá fazem suas refeições. Nesta, como em todas as demais cenas, fica clara a crítica à hipocrisia e à incoerência transbordante da relação dicotômica entre desejo e convenções sociais.

O filme frustra as expectativas do espectador todo o tempo, como forma de agressão ao senso comum. Nada do que acontece é trivial, rotineiro, previsível. A ação se dá de modo que a descontinuidade e o nonsense instauram-se na sucessão de gestos e cenas. Buñuel alia humor e ironia em uma sátira das convenções burguesas.

O nome do filme faz referência a uma liberdade que não existe, que é apenas uma presença imaterial, um fantasma. Uma liberdade que só pode ser experimentada como aparição, visão ou sonho. A liberdade, tal qual o desejo, se manifesta nas profundezas do inconsciente, ou do imaginário. No entanto, o fantasma da liberdade do título pode ser o próprio cinema, sua experiência libertadora, à qual Buñuel creditava um poder transformador da sociedade.

O cinema é o fantasma que assombra as convenções sociais, libertando a mente humana da repressão e das jaulas psíquicas, abrindo o maravilhoso mundo do desconhecido, daquilo que não se encontra ordinariamente, da poesia libertadora da fantasia. O cinema, para os surrealistas, é sinônimo de libertação. Então, que venha a liberdade!

* Carolina Soares é membro do projeto de extensão "Cine-UFG, debates".

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quinta-feira, 13 de maio de 2010

12. FICA - programação de cinema.(www.fica.art.br)

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Conferência: A Civilização das Imagens: o que resta do cinema?
  • Jacques Aumont - professor e pesquisador da Nova Sorbonne e uma das maiores autoridades mundiais em crítica, história e teoria de cinema.
  • Ismail Xavier (coordenador) – teórico e crítico de cinema, professor da ECA-USP, membro do conselho consultivo da Cinemateca Brasileira e autor de diversos livros sobre cinema.
Data: 12 junho
Hora: 10h00
Local: Hotel Vila Boa

Recital-Conferência: A Canção Brasileira
  • José Miguel Wisnik – músico, pensador, crítico literário, professor de Teoria Literária da USP. Se autodenomia “uspianista” por conseguir unir literatura e música. É considerado um dos grandes compositores brasileiros da atualidade.
Data: 11 junho
Hora: 20h00
Local: Teatro São Joaquim



 Cursos de Cinema

Cinema e Filosofia: o cinema por Gilles Deleuze – com Ricardo Musse
Data: 10 e 11 de junho
Hora: 09h-12h

Crítica de Cinema – Rubens Machado Jr
Data: 10 e 11 de junho
Hora: 09h-12h

Cinema e psicanálise, a invenção do espectador – João Ângelo
Data: 9, 10 e 11 de junho
Hora: 09h-12h

Cinema e Meio Ambiente – Marcelo Lyra
Data: 9, 10 e 11 de junho
Hora: 09h-12h

Direção em Documentário – Pedro Cezar
Data: 9, 10 e 11 de junho
Hora: 09h-12h

O cinema de Tarantino – Mauro Baptista
Data: 9, 10 e 11 de junho
Hora: 09h-12h


A mulher no Cinema – Rosa Berardo
Data: 9, 10 e 11 de junho
Hora: 09h-12h

* Informações e inscrições:

+55 62 3225-3436
+55 62 3223-1313
+55 62 3223-3051






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terça-feira, 11 de maio de 2010

Belle de Jour, qual o lugar do desejo? (em cartaz)

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Belle de jour

É possível decifrar quem somos através de nossos sonhos? 

Adele Lazarin*


     Em alguns filmes de Luis Buñuel, com O discreto charme da burguesia(1972) e O fantasma da liberdade(1974), somos contemplados com muitas cenas absurdas e em alguns casos, uma certa "falta" de linearidade na história. Não é aquele cinema que estamos acostumados a ver todos os dias. Num primeiro momento, a falta de lógica aparente na tela nos faz pensar se mergulhamos na cabeça e nos sonhos de alguém, sem censuras, sem cortes, talvez até sem nexo.

      O filme A bela da tarde é um pouco diferente. O longa de 1967 tem sim, a sua parcialidade de irrealidade, porém ele segue outra linha. Nesse filme acompanhamos a trajetória de apenas um personagem, e vemos mais que os seus sonhos, vemos as suas fantasias. Diferente dos outros filmes já citados, Buñuel segue uma narrativa um pouco mais linear e nos conta a história de Séverine (Catherine Deneuve), ao mesmo tempo em que somos brindados com os devaneios da personagem.

      De acordo com o professor Eduardo Peñuela Cañezal, “O Surrealismo [...] baseia seus princípios na crença de que existe uma realidade superior, à qual se chega por associações de coisas aparentemente desconexas ou, então, [...] da decifração dos significados enigmáticos que se elaboram nos sonhos”. Se analisarmos o cinema surreal dessa forma, poderemos então compreender a protagonista de A bela da tarde? Quem é Séverine? O que ela realmente deseja? 

      Séveri Serizy é uma bela e jovem burguesa, recém casada com o médico Pierre Serizy (Jean Sorel). Aos olhos dos outros ela é uma mulher fiel, casta, intocável. E de fato ela é assim. Ela até se recusa a dormir com o seu marido (ou falando mais abertamente, se recusa a ter relações sexuais com ele). Ela teme se envolver com ele? Ou ela teme o que deixará de ser e representar para o marido? 

      Mas se ela de fato é essa mulher tão pura, então como explicar os sonhos que ela tem durante todo o filme? Logo no início, Buñuel nos presenteia com uma cena em que Séverine é humilhada e violentada, e o que poderia ser considerado pior, ela sente prazer nisso. O que talvez perturbe mais o expectador durante o filme não é a irrealidade, mas sim o conteúdo dessa irrealidade. Talvez alguns até se surpreendam em ver algo que eles intimamente sonhem, mas fiquem chocados em ver essas fantasias tão abertamente expostas.

      Em busca disso que ela tanto deseja, Séverine vai parar na casa de Madame Anais. Lá ela aprende a trabalhar como prostituta, junto com outras meninas. Porém ela só pode permanecer durante o período da tarde, se tornando dessa forma a Belle de Jour, ou Bela da Tarde. Mas ao contrário das outras meninas, Séverine não trabalha por que precisa de dinheiro. Ela trabalha porque quer. 

     Eu acho interessante a forma como Buñuel conduz a sua personagem até  o bordel. Um amigo de Pierre, Henri Husson, lhe dá o endereço. Ele mesmo diz que já freqüentou o lugar. Por que Buñuel faz isso? Por que ele precisa que esse personagem, que deseja Séverine, lhe indique o caminho? Talvez porque essa ação seja o prenúncio de outra. Talvez algo importante aconteça para a história, e Buñuel sugere isso, com um personagem que conhece Séverine e que talvez volte a freqüentar a casa de Madame Anais. O cineasta faz isso em outros momentos do filme, cenas que indiquem coisas que podem acontecer no futuro.

      Quando me pergunto quem é Séverine, lembro de algo que Henri Husson lhe diz. Ele fala que Séverine gosta de ser humilhada. Antes disso, ele diz que a desejava, mas isso quando ele acreditava que ela era casta. Quando ele a considerava intocável. O que mais o impressiona não é descobrir que um de seus melhores amigos está sendo traído, e sim que sua mulher idealizada não é quem ele pensa que é. 

      Mas eu vejo Séverine de duas maneiras. Primeiro como uma mulher Helena. Chamando-a por esse nome, me refiro à Helena de Tróia. Muitos autores às vezes se referem a algumas personagens como Helenas. Helena foi uma mulher linda e desejada por homens, da mesma forma que Séverine. Séverine era desejada em seus dois papeis, tanto como mulher fiel, quanto prostituta. Quando se sente a vontade em seu novo trabalho ela é a mais requisitada pelos clientes de Madame Anais.
      Em alguns mitos, Helena é enganada por Afrodite, a deusa do amor, a seguir com Paris para Tróia. Em outros, ela vai por conta própria. O que importa é que ela tomou uma decisão que interferiu nos destinos de vários homens. Talvez a escolha dela tenha sido impensada, ingênua, ou egoísta. Da mesma forma agiu Séverine. Ao decidir bater na porta de Madame Anais, para realizar um desejo íntimo seu, ela determinou o destino de outros homens, inclusive o de seu marido.

      Mas eu também comparo Séverine à Colombina da Comédia dell’arte. Nesse teatro italiano, o Pierrot é apaixonado pela Colombina, que o ama, mas também ama o Arlequim. Em algumas peças, a Colombina foge com o Arlequim, mas depois retorna para o Pierrot, assim como Séverine retorna ao marido. Podemos dizer que o triste Pierrot simboliza o amor, o espiritual. Já o alegre Arlequim representa a paixão, o carnal. Ora, a Colombina, nunca será completa apenas com o amor de um. Ela precisa tanto do Arlequim quanto do Pierrot. E assim acontece com Séverine.

      Séverine ama o marido. Ela mesma diz que não o abandonará. Porém o que existe entre eles corresponde mais ao espiritual. Ela não consegue se “entregar” a Pierre (engraçado como o nome dele parece com o Pierrot), mas o ama. No entanto, Séverine também precisa de seu trabalho para se sentir completa. É ali que ela “encontra o Arlequim” e satisfaz a sua paixão e os seus desejos. É até possível ver como ela se transforma ao longo do filme. Quando conhecemos Séverine, ela é apática e sem confiança. Até o tempo que ela hesita para chegar à porta de Madame Anais e depois aceitar o trabalho só confirma isso. Mas depois vemos uma mulher alegre e segura de si.

     E o que é mais impressionante: a forma como Séverine age diante essa situação, com tanta simplicidade, até nos faz acreditar que ela não está traindo o marido. Ou que simplesmente tudo esteja de acordo um com o outro e as coisas devem funcionar assim e pronto. Nada mais natural.

* Adele Lazarin é membro do grupo de extensão "Cine-UFG, debates".

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domingo, 9 de maio de 2010

O cinema de desejos (Mostra Buñuel - em cartaz)

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BUÑUEL E O CINEMA DE DESEJOS

Rodrigo Cássio*


Entre os filmes em exibição na mostra dedicada ao cineasta Luis Buñuel, em cartaz no Cine UFG, no Câmpus 2 da universidade, de segunda a sexta-feira, um título de 1977 chama a atenção do espectador de hoje. Não por ter sido o último filme realizado por Buñuel, nem por ser um exemplar menor de uma obra destacada e significativa, mesmo que essas duas premissas sejam verdadeiras.

Mais de30 anos depois de realizado, surpreendentemente, Esse Obscuro Objeto de Desejo (que será exibido amanhã e quinta-feira, às 17h30, e no dia 18, no mesmo horário) dialoga com o presente ao harmonizar, com agudeza, as fissuras internas de uma narrativa dividida entre o romance do casal de protagonistas e as inquietações morais e políticas que lhe servem de pano de fundo.

Um dos desafios do cinema recente, de fato, é o equilíbrio entre essas duas dimensões do discurso. De um lado, a tradição romanesca que põe em foco os enlaces amorosos, opção com lastro popular e indispensável em um número infinito de filmes narrativos. De outro, a reflexão do filme sobre temas de caráter mais objetivo, que põem o espectador em contato com os problemas da coletividade. Por serem coletivos, justamente, esses problemas extrapolam o indivíduo cingido no romance, ou seja, extrapolam a boa ou a má sorte no amor, a consumação ou a irrealização dos desejos afetivos.

Já não vivemos, hoje, uma era de atitudes intempestivas contra os filmes narrados convencionalmente, como quando Buñuel traduziu o surrealismo no cinema. Já em 1977, até certo ponto, Esse Obscuro Objeto mostra as demandas de uma nova época, não absolutamente mais conformista, mas sim na qual os gestos de ruptura se tornam cada vez mais difusos, deixando de pautar os debates mais calorosos do meio cinematográfico.

Assim, o último filme de Buñuel é extremamente comedido nos lances de estranheza surrealista que caracterizam suas obras-primas, como o elementar Um Cão Andaluz (1929), realizado junto com Salvador Dalí. Esse Obscuro Objeto é um filme linear, com conexões lógicas entre planos e eventos, de maneira que nada resulta inexplicável se desejamos ver refletido, na tela do cinema, o mundo da experiência psicológica comum. Em outras palavras, neste filme de 1977, a armação ilógica dos sonhos já não rege tão intensamente a criação de Buñuel, apesar da permanente acidez crítica contra os valores fundantes do Ocidente.

Nesses termos, Esse Obscuro Objeto é certamente o Buñuel mais acessível ao espectador acostumado com os filmes fluentes e realistas que padronizam a vertente comercial do cinema. E é aqui que desponta a agudeza harmonizadora referida anteriormente. Buñuel conta uma história de amor para desconstruir a própria noção de amor romântico. Como grande parte dos diretores do presente, cada vez menos aptos a dispensarem um bom romance para falar da sociedade como um todo, o diretor conta a história de um senhor rico com uma jovem de 19 anos, cujo envolvimento extrapola as tipificações a fim de que o próprio desejo se revele como fator determinante da vida.

Mais uma vez, Buñuel afirma os fundamentos freudianos da sua visão de mundo. Mas não apenas o Freud analista das pulsões: também o Freud que investiga na organização da sociedade o reflexo daqueles conflitos que, no filme, se condensam no aspecto “obscuro” do desejo.

Avançando em relação ao melodrama irônico que Buñuel praticou quando exilado no México, no final dos anos 1940 e durante os anos 1950,  Esse Obscuro Objeto harmoniza, portanto, um discurso que conjuga a crítica da cultura às narrativas de origem clássica. Comparado ao que tem se notabilizado numa linha semelhante, como o tecnicamente bem feito (mas pouco relevante)  O Segredo dos seus Olhos, de Juan José Campanella, o último Buñuel confirma que um filme menor de um grande diretor tende a ser ainda um filme de destaque, tendo em vista a média do que é produzido no cinema.

Uma mostra dessa diferença que amplia o poder do discurso é que, diferente do pretensioso filme argentino, Este Obscuro Objeto não passa pela história de um povo sem deter-se nela, como quem faz um comentário dispensável, já que preocupado sobretudo com os afetos particulares das personagens ou o preciosismo técnico da imagem. Em vez disso, o filme projeta nas próprias personagens a capacidade de dizerem tanto (ou mais) sobre o mundo em que vivem do que sobre si próprias. Buñuel fala tanto de amor quanto de terrorismo, tanto da miserável condição daquele que sofre por um objeto supostamente determinado (uma amante) quanto daquele que sofre sem identificar muito bem o seu objeto (uma vítima do terrorismo).

Nesse passo, Esse Obscuro Objeto ataca as sutis laborações da vida burguesa, como as mulheres que se tornam objeto de consumo, mas também a conturbada inserção do catolicismo em uma era de valores sem substância – a cena final, uma alegoria da castidade corrompida e sem razão de ser, exposta na vitrine de uma loja, pontua com evidência o que foi a obra de Buñuel: um rompimento na direção do que esteve submerso, uma procura visual pelo que subjaz aos atos conciliadores dos homens civilizados, isto é, pelo que esteve desde sempre obscurecido pelos recalques e repressões e, repentinamente, eleva-se a olhos vistos.


Rodrigo Cássio é mestre em cinema pela Universidade Federal de Goiás (UFG)
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segunda-feira, 3 de maio de 2010

"O segredo dos seus olhos" (em cartaz)

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Os segredos de Campanella

Pedro Novaes*



Para David Bordwell, no cinema, "a originalidade aparece quando um diretor criativamente ajusta um novo meio a um fim já conhecido ou inventa novos objetivos que remanejem os meios já conhecidos." 

As celebradas cinematografias modernas se enquadram na primeira hipótese, construindo nova linguagem e estruturas representativas para fazer filmes e falar do mundo. Do outro lado, o cinema de um Almodóvar, por exemplo, que usa a estrutura consagrada do melodrama para explorar, frequentemente de forma irônica, terrenos das relações humanas estranhos a esse gênero narrativo, confirma a segunda possibilidade.

Mas, para ser uma obra-prima, um filme precisa ser original? 

"O Segredo dos Seus Olhos", o oscarizado filme do argentino Juan José Campanella, parece sugerir a resposta de que não, de que também um filme que segue à risca os princípios narrativos de um gênero consagrado, sem inovar em fins ou meios, pode sim ser uma obra-prima.

O filme, que conta a história da investigação de um crime brutal pelo oficial de justiça Benjamin Espósito (Ricardo Darín) e de sua paixão reprimida pela chefe Irene Menéndez Hastings (Soledad Villamil), é cinema clássico e melodrama em todos os sentidos. Não há ali qualquer pretensão de inovação de linguagem ou de subversão de princípios narrativos consagrados. Ao contrário, o que Campanella sabe fazer muito bem é explorar e extrair desses elementos, polidos ao longo de um século desde sua consolidação, sua máxima força.

Por sua hegemonia, o melodrama é um gênero repleto de armadilhas. É um grande desafio fazer um filme nesse gênero que  realmente desafie a inteligência do espectador - é muito fácil escorregar para o sentimentalismo exagerado, para o maniqueísmo, para personagens esquemáticos ou para o moralismo tolo. Mas Campanella, em sua maestria como roteirista e diretor, e apoiado em soberbas interpretações, consegue percorrer o caminho nesse labirinto, caminhando sobre o fio da navalha e nos presenteando com um filme magistral.

Até o título do filme é, de certa forma, uma exaltação do cinema clássico, a nos dizer que é no close, no primeiro plano dos rostos dos personagens - justamente um dos princípios do estilo na narrativa clássica - que está o segredo da boa narrativa cinematográfica, pois é ali que se esconde e revela o sentido da própria vida.

O segredo deste grande filme está, antes de mais nada, na costura sutil entre as duas tramas paralelas (forma canônica do cinema clássico, cabe lembrar) - a romântica, do amor reprimido dos protagonistas - e a de suspense - a investigação do crime -, influenciando-se e motivando-se mutuamente de uma maneira extremamente engenhosa e que tomamos como absolutamente natural. 

Na verdade, e aqui reside outra parte fundamental do êxito do filme, o roteiro urde a essas duas tramas, de forma ainda mais sensível e delicada, um terceiro componente: o pano de fundo da sociedade argentina no período que antecede a ditadura militar. Por trás do crime e do amor entre Benjamim e Irene há um caldo latente e que a tudo influencia, de violência extrema, impunidade, ausência de justiça, ineficácia do Estado e corrupção.

E aqui está, quem sabe, o segredo de todo o sucesso do cinema argentino, e aquilo que o coloca, no campo da ficção ao menos, muito adiante do cinema brasileiro: nas palavras de José Geraldo Couto,  sua capacidade de falar sobre "os grandes assuntos (políticos, sociais, morais) de forma indireta, oblíqua, respeitando a inteligência do espectador. Diz ele: "O interesse desses filmes parece estar sempre voltado para os personagens e sua relação com o espaço físico e humano que os cerca – o que, de certo modo, é a base de todo o cinema que não seja “de tese”. O contexto social e político entra pelas bordas, não arromba a porta da frente."

A agudeza desta afirmação salta aos olhos em "O Segredo..." O romance dos protagonistas e o crime estão inapelavelmente enredados na teia da sociedade argentina. Puxamos um fio, e todo o país vem atrás.

À guisa de conclusão, uma palavra sobre o celebrado plano-sequência do estádio do Racing, o famoso clube portenho, que de fato merece entrar para a lista dos grandes planos-sequência de todos os tempos da história do cinema. Ele é testemunho do quilate de Campanella como diretor não exatamente pela maestria de sua execução, em sua perfeição técnica, mas justamente por somar, ou antes equilibrar, virtuosismo estético e técnico a eficiência narrativa.
Um diretor mediano teria optado por uma sequência freneticamente editada - o básico de qualquer cena de perseguição policial - o que seria eficiente, mas de pouco impacto. Um diretor capaz em termos técnicos, mas sem sensibilidade, usaria o plano-sequência no momento errado do filme, tornando-o uma constrangedora celebração de seu próprio virtuosismo técnico, sem função narrativa clara.

Um grande diretor como Campanella opta pelo plano-sequência no lugar certo, colocando-nos na ação, gerando tensão de maneira exponencial e ainda, ao mesmo tempo, permitindo-se chamar a atenção para a representação e para o estilo em si - ninguém fica imune à maneira pela qual o próprio plano é executado. Comentamos à saída da sala não a perseguição, mas o próprio plano: como é possível executá-lo? Que incrível é a orquestração do balé da câmera que abandona os protagonistas para encontrar - e permitir que o espectador perceba antes dos personagens - o rosto do vilão em primeiro plano no meio da multidão!

Somente um mestre da direção consegue este tipo de efeito e esta convergência de funções num plano, escapando de ser acusado de se render a manobras desnecessárias apenas para exibir seu virtuosismo.

Por tudo isso, "O Segredo dos Seus Olhos" é de fato uma obra-prima.

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Blog do Lisandro © Agosto - 2009 | Por Lorena Gonçalves
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