quinta-feira, 14 de abril de 2011

Realengo ou a infâmia de pensamentos e atos impuros.


 Realengo



Contardo Calligaris

A matança nos dá uma lição sobre os riscos do aparente consolo oferecido pelo fanatismo moral e religioso


1) EM MARÇO de 2009, em Wendlingen, Alemanha, um jovem de 17 anos entrou no colégio do qual ele tinha sido aluno e começou uma matança que terminou com seu suicídio e custou a vida a 15 pessoas.
Na época, notei que, para os suicidas-assassinos de massa, encarnar o anjo da morte é sempre uma demonstração pública. E perguntei: uma demonstração de quê?

Pois é, num mundo dominado por máscaras e aparências, talvez os únicos eventos que se destaquem por serem indiscutivelmente reais sejam o nascimento e a morte. Nessa ótica, as meninas, para nos obrigar a levá-las a sério, podem engravidar e dar à luz. Quanto aos meninos, o que lhes sobra para serem levados a sério é morrer ou matar.

Por isso as meninas pensam no amor, e os meninos, na guerra; as meninas sonham em ser mestres da vida, os meninos sonham em ser mestres da morte.

Em suma, atrás da singularidade das razões de cada um, os suicidas-assassinos (todos homens) parecem agir na tentativa desesperada de se levarem a sério e de serem, enfim, levados a sério: "O mundo me despreza e me desprezará mais ainda, mas, diante de meu ato mortífero, não poderá negar que sou gente grande, um "macho de respeito'".

Mais um detalhe. Cada vez mais, a preservação da vida parece ser nosso valor supremo. Todos estão dispostos a qualquer coisa para não morrer; não é estranho que, de repente, aos olhos de alguns, a verdadeira marca de superioridade pareça ser a facilidade em matar e se matar.

2) É possível que a vida escolar de Wellington, o assassino de Realengo, tenha sido um suplício. Mas a simples vingança pelo bullying sofrido não basta para explicar seu ato. Eis um modelo um pouco mais plausível (e infelizmente comum).

Durante sua adolescência, um jovem é zombado pelos colegas e, sobretudo, pelas meninas que despertam seu desejo. Para se proteger contra a recusa e a humilhação, o jovem se interdita o que ele deseja e que lhe está sendo negado: "As meninas que eu gosto riem de mim e de meu desejo por elas; para não me transformar numa piada, farei da necessidade virtude: entrarei eu mesmo em guerra contra meu desejo. Ou seja, transformarei a exclusão e a gozação num valor: não fui rechaçado, eu mesmo me contive -por exemplo, porque quero me manter ilibado, sem mancha".

Wellington, o assassino de Realengo, na sua carta de despedida, pede para não ser contaminado por mãos impuras. Difícil não pensar no medo de ele ser contaminado por suas próprias mãos, e no fato de que a morte das meninas preservaria sua pureza, libertando-o da tentação.

A matança, neste caso, é uma maneira de suprimir os objetos de desejo, cuja existência ameaça o ideal de pureza do jovem. Ora, é graças a esse ideal que ele transformou seu fracasso social e amoroso numa glória religiosa ou moral. Como se deu essa transformação?

Simples. Para transformar os fracassos amorosos em glória, o fanatismo religioso é o cúmplice perfeito. Funciona assim: você é isolado? Sente-se excluído da festa mundana? Pois bem, conosco você terá uma igreja (real ou espiritual, tanto faz) que lhe dará abrigo; ajudaremos você a esquecer o desejo de participar de festas das quais você foi e seria excluído, pois lhe mostraremos que esse não é seu desejo, mas apenas a pérfida tentação do mundo. Você acha que foi rechaçado? Nada disso; ao contrário, você resistiu à sedução diabólica. Você acha que seu desejo volta e insiste? Nada disso, é o demônio que continua trabalhando para sujar sua pureza.

Graças ao fanatismo, em vez de sofrer com a frustração de meus desejos, oponho-me a eles como se fossem tentações externas. As meninas me dão um certo frio na barriga? Nenhum problema, preciso apenas evitar sua sedução -quem sabe, silenciá-las.

Fanático (e sempre perigoso) é aquele que, para reprimir suas dúvidas e seus próprios desejos impuros, sai caçando os impuros e os infiéis mundo afora.

Há uma lição na história de Realengo -e não é sobre prevenção psiquiátrica nem sobre segurança nas escolas. É uma lição sobre os riscos do aparente consolo que é oferecido pelo fanatismo moral ou religioso. Dito brutalmente, na carta sinistra de Wellington, eu leio isto: minha fé me autorizou a matar meninas (e a me matar) para evitar a frustrante infâmia de pensamentos e atos impuros.

* Contardo Galligaris é psicanalista.

9 Comentários

B. Freitas disse...

Lisandro,

E isto não é de agora, mas sempre acompanhou a história das sociedades humanas.

O que é uma igreja e um partido político? São escolas da intolerância e do sectarismo.

Enquanto podemos (e devemos) discutir teses filosóficas ou ideológicas, as questões de “fé” e de “classe” eliminam qualquer possibilidade de liberdade de pensamento ou análise crítica. .

O que é a instituição “Exército” se não uma escola de assassinos. Enviamos nossos jovens para aprender a matar rápido e muito, pessoas que eles ainda nem conhecem, mas que no futuro serão seus inimigos! Ali irão aprender a sofrer e a fazer sofrer outros seres humanos.

Nisto tudo nada mudou, a não ser a rapidez e alcance da mídia.

Fala-se muito do fanatismo dos muçulmanos e sempre usam o Corão como se fosse um manual terrorista .

O Corão, como todo “manual” religioso, tem muita coisa boa e como a Bíblia, muita bobagem!

Se a mídia explorasse esse “lado bom” dos preceitos maometanos e os divulgasse, faria melhor papel do que incentivar jovens a atos como estes, já que somos uma espécie de animal frágil e solitário em nossas angústias.

Matar e se matar! Existe algo mais desumano? Não existe razão lógica em uma mente conturbada.

Abraços, Freitas,

Valéria disse...

Na verdade esse rapaz é um esquizofrenico e um dos sintomas principais é fanatismo; SEJA RELIGIOSO, POLITICO OU CIENTÍFICO. Ele poderia ter escrito uma carta dizendo que ele é um ET, tentando melhorar a raça humana , por exemplo.
O bullyng é um detonador, mas como diz o texto, está longe de ser tudo.
Na verdade devemos agradecer ele ser um Esquizo, se fosse um psicopata antisocial mostraria q estamos caminhando bem proximo ao EUA.
O problema são as pessoas desassistidas em saude mental e a propaganda que a mídia faz, e assim de fato outros esquizos e muitos psicopatas podem imitar... A mídia não se responsabiliza, quer vender jornal. Porque não dá enfase aos heróis do caso, o policial e a aluna ferida, ou aluno, nem sei, q foi pedir ajuda sem se preocupar com seu ferimento.

Valéria

Maria José disse...

Obrigada, Lisandro. Essa abordagem vem ao encontro de muitas coisas em que ando pensando. É do Calligaris, não é?

Abraço grande
Zz

Maysa Puccinelli disse...

Chegamos a um ponto em que, paradoxalmente ou não, a sociedade do conhecimento não expurga o medo da vida do homem. Não garante autonomia. Não cumpre a promessa de liberdade. E o que vem depois da promessa descumprida? A terrível constatação de que não há garantia. Não há pacto social que não esteja sujeito a ruir frente á des-razão , ao desespero e á barbárie.

Curioso como a evolução vertiginosa de uma sociedade da informação, cresce pari-passo a um retorno do fanatismo religioso. É como se de um lado as religiões dissessem: “seus iluministas bobinhos, achavam que poderiam destituir o poder da igreja com essa historinha de liberdade-igualdade-fraternidade-pra-boi-dormir? E quem foi que disse que é disso que o povo gosta, que é isso que o povo quer,? Agora tomem! Segurem a fúria da espada divina, porque nós voltamos com tudo, e vamu toca o terror!”.

E voltaram mesmo, como o retorno de um recalcado que nunca saiu de cena.

E do outro lado, também vociferam os fiéis: “voces fizeram promessa de campanha. Acabaram com o medo? Não! Libertaram o homem? Não! Trouxeram felicidade? Não!... Agora me deixa acreditar que o Senhor é MEU pastor e nada ME faltará, por isso fui escolhido pra praticar sua justiça. Afinal, eu sou tão especial, não sou?!”

Por onde passa a razão nesta querela? Pela mídia, pelas suposições diagnósticas, por Deus ou pelo Diabo... ou talvez, pela sensatez de torcer pra ficar bem longe desta briga de cachorros-loucos.

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lisandro Nogueira disse...

Maysa e Fernando, bons comentários. Obrigado Fernando!! pela dica do livro. Penso que Contardo foi no ponto certo: todo fanatismo é danoso.

' disse...

A liberdade, se for aplicada em seu real conceito, não pode ser usada. Ela tem de ser alienada a ética e a moral, para haver de fato a preservação da vida, numa perspectiva de convívio social.

Então, de certo modo, tudo que foge a essa alienação, dá margem para qualquer atitude, que julguemos ser danosa, ou não.

E é só olharmos ao nosso redor, para percebermos que estamos em constante iminência de ações dessa natureza.

Éder dos Santos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Éder dos Santos disse...

Estou vendo cada área distinta de pensadores usar o caso de Realengo para reafirmar sua teses. Acho pobre essa tentativa, assim como foram as matérias das principais redes de televisão sobre o caso. Tentado explicar, diagnosticar um paciente morto que nunca viram ou verão.

Para aqueles já curtem a anti-religião (qualquer que seja) um prato cheio. Para os oportunistas parlamentares do desarmamento outro prato cheio e por aí vai...

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