Realengo
Contardo Calligaris
A matança nos dá uma lição sobre os riscos do aparente consolo oferecido pelo fanatismo moral e religioso |
1) EM MARÇO de 2009, em Wendlingen, Alemanha, um jovem de 17 anos entrou no colégio do qual ele tinha sido aluno e começou uma matança que terminou com seu suicídio e custou a vida a 15 pessoas.
Na época, notei que, para os suicidas-assassinos de massa, encarnar o anjo da morte é sempre uma demonstração pública. E perguntei: uma demonstração de quê?
Pois é, num mundo dominado por máscaras e aparências, talvez os únicos eventos que se destaquem por serem indiscutivelmente reais sejam o nascimento e a morte. Nessa ótica, as meninas, para nos obrigar a levá-las a sério, podem engravidar e dar à luz. Quanto aos meninos, o que lhes sobra para serem levados a sério é morrer ou matar.
Por isso as meninas pensam no amor, e os meninos, na guerra; as meninas sonham em ser mestres da vida, os meninos sonham em ser mestres da morte.
Em suma, atrás da singularidade das razões de cada um, os suicidas-assassinos (todos homens) parecem agir na tentativa desesperada de se levarem a sério e de serem, enfim, levados a sério: "O mundo me despreza e me desprezará mais ainda, mas, diante de meu ato mortífero, não poderá negar que sou gente grande, um "macho de respeito'".
Mais um detalhe. Cada vez mais, a preservação da vida parece ser nosso valor supremo. Todos estão dispostos a qualquer coisa para não morrer; não é estranho que, de repente, aos olhos de alguns, a verdadeira marca de superioridade pareça ser a facilidade em matar e se matar.
2) É possível que a vida escolar de Wellington, o assassino de Realengo, tenha sido um suplício. Mas a simples vingança pelo bullying sofrido não basta para explicar seu ato. Eis um modelo um pouco mais plausível (e infelizmente comum).
Durante sua adolescência, um jovem é zombado pelos colegas e, sobretudo, pelas meninas que despertam seu desejo. Para se proteger contra a recusa e a humilhação, o jovem se interdita o que ele deseja e que lhe está sendo negado: "As meninas que eu gosto riem de mim e de meu desejo por elas; para não me transformar numa piada, farei da necessidade virtude: entrarei eu mesmo em guerra contra meu desejo. Ou seja, transformarei a exclusão e a gozação num valor: não fui rechaçado, eu mesmo me contive -por exemplo, porque quero me manter ilibado, sem mancha".
Wellington, o assassino de Realengo, na sua carta de despedida, pede para não ser contaminado por mãos impuras. Difícil não pensar no medo de ele ser contaminado por suas próprias mãos, e no fato de que a morte das meninas preservaria sua pureza, libertando-o da tentação.
A matança, neste caso, é uma maneira de suprimir os objetos de desejo, cuja existência ameaça o ideal de pureza do jovem. Ora, é graças a esse ideal que ele transformou seu fracasso social e amoroso numa glória religiosa ou moral. Como se deu essa transformação?
Simples. Para transformar os fracassos amorosos em glória, o fanatismo religioso é o cúmplice perfeito. Funciona assim: você é isolado? Sente-se excluído da festa mundana? Pois bem, conosco você terá uma igreja (real ou espiritual, tanto faz) que lhe dará abrigo; ajudaremos você a esquecer o desejo de participar de festas das quais você foi e seria excluído, pois lhe mostraremos que esse não é seu desejo, mas apenas a pérfida tentação do mundo. Você acha que foi rechaçado? Nada disso; ao contrário, você resistiu à sedução diabólica. Você acha que seu desejo volta e insiste? Nada disso, é o demônio que continua trabalhando para sujar sua pureza.
Graças ao fanatismo, em vez de sofrer com a frustração de meus desejos, oponho-me a eles como se fossem tentações externas. As meninas me dão um certo frio na barriga? Nenhum problema, preciso apenas evitar sua sedução -quem sabe, silenciá-las.
Fanático (e sempre perigoso) é aquele que, para reprimir suas dúvidas e seus próprios desejos impuros, sai caçando os impuros e os infiéis mundo afora.
Há uma lição na história de Realengo -e não é sobre prevenção psiquiátrica nem sobre segurança nas escolas. É uma lição sobre os riscos do aparente consolo que é oferecido pelo fanatismo moral ou religioso. Dito brutalmente, na carta sinistra de Wellington, eu leio isto: minha fé me autorizou a matar meninas (e a me matar) para evitar a frustrante infâmia de pensamentos e atos impuros.
* Contardo Galligaris é psicanalista.
9 Comentários
Lisandro,
E isto não é de agora, mas sempre acompanhou a história das sociedades humanas.
O que é uma igreja e um partido político? São escolas da intolerância e do sectarismo.
Enquanto podemos (e devemos) discutir teses filosóficas ou ideológicas, as questões de “fé” e de “classe” eliminam qualquer possibilidade de liberdade de pensamento ou análise crítica. .
O que é a instituição “Exército” se não uma escola de assassinos. Enviamos nossos jovens para aprender a matar rápido e muito, pessoas que eles ainda nem conhecem, mas que no futuro serão seus inimigos! Ali irão aprender a sofrer e a fazer sofrer outros seres humanos.
Nisto tudo nada mudou, a não ser a rapidez e alcance da mídia.
Fala-se muito do fanatismo dos muçulmanos e sempre usam o Corão como se fosse um manual terrorista .
O Corão, como todo “manual” religioso, tem muita coisa boa e como a Bíblia, muita bobagem!
Se a mídia explorasse esse “lado bom” dos preceitos maometanos e os divulgasse, faria melhor papel do que incentivar jovens a atos como estes, já que somos uma espécie de animal frágil e solitário em nossas angústias.
Matar e se matar! Existe algo mais desumano? Não existe razão lógica em uma mente conturbada.
Abraços, Freitas,
Na verdade esse rapaz é um esquizofrenico e um dos sintomas principais é fanatismo; SEJA RELIGIOSO, POLITICO OU CIENTÍFICO. Ele poderia ter escrito uma carta dizendo que ele é um ET, tentando melhorar a raça humana , por exemplo.
O bullyng é um detonador, mas como diz o texto, está longe de ser tudo.
Na verdade devemos agradecer ele ser um Esquizo, se fosse um psicopata antisocial mostraria q estamos caminhando bem proximo ao EUA.
O problema são as pessoas desassistidas em saude mental e a propaganda que a mídia faz, e assim de fato outros esquizos e muitos psicopatas podem imitar... A mídia não se responsabiliza, quer vender jornal. Porque não dá enfase aos heróis do caso, o policial e a aluna ferida, ou aluno, nem sei, q foi pedir ajuda sem se preocupar com seu ferimento.
Valéria
Obrigada, Lisandro. Essa abordagem vem ao encontro de muitas coisas em que ando pensando. É do Calligaris, não é?
Abraço grande
Zz
Chegamos a um ponto em que, paradoxalmente ou não, a sociedade do conhecimento não expurga o medo da vida do homem. Não garante autonomia. Não cumpre a promessa de liberdade. E o que vem depois da promessa descumprida? A terrível constatação de que não há garantia. Não há pacto social que não esteja sujeito a ruir frente á des-razão , ao desespero e á barbárie.
Curioso como a evolução vertiginosa de uma sociedade da informação, cresce pari-passo a um retorno do fanatismo religioso. É como se de um lado as religiões dissessem: “seus iluministas bobinhos, achavam que poderiam destituir o poder da igreja com essa historinha de liberdade-igualdade-fraternidade-pra-boi-dormir? E quem foi que disse que é disso que o povo gosta, que é isso que o povo quer,? Agora tomem! Segurem a fúria da espada divina, porque nós voltamos com tudo, e vamu toca o terror!”.
E voltaram mesmo, como o retorno de um recalcado que nunca saiu de cena.
E do outro lado, também vociferam os fiéis: “voces fizeram promessa de campanha. Acabaram com o medo? Não! Libertaram o homem? Não! Trouxeram felicidade? Não!... Agora me deixa acreditar que o Senhor é MEU pastor e nada ME faltará, por isso fui escolhido pra praticar sua justiça. Afinal, eu sou tão especial, não sou?!”
Por onde passa a razão nesta querela? Pela mídia, pelas suposições diagnósticas, por Deus ou pelo Diabo... ou talvez, pela sensatez de torcer pra ficar bem longe desta briga de cachorros-loucos.
Maysa e Fernando, bons comentários. Obrigado Fernando!! pela dica do livro. Penso que Contardo foi no ponto certo: todo fanatismo é danoso.
A liberdade, se for aplicada em seu real conceito, não pode ser usada. Ela tem de ser alienada a ética e a moral, para haver de fato a preservação da vida, numa perspectiva de convívio social.
Então, de certo modo, tudo que foge a essa alienação, dá margem para qualquer atitude, que julguemos ser danosa, ou não.
E é só olharmos ao nosso redor, para percebermos que estamos em constante iminência de ações dessa natureza.
Estou vendo cada área distinta de pensadores usar o caso de Realengo para reafirmar sua teses. Acho pobre essa tentativa, assim como foram as matérias das principais redes de televisão sobre o caso. Tentado explicar, diagnosticar um paciente morto que nunca viram ou verão.
Para aqueles já curtem a anti-religião (qualquer que seja) um prato cheio. Para os oportunistas parlamentares do desarmamento outro prato cheio e por aí vai...
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