Diálogos sobre o “Anticristo” de Lars Von Trier
Lisandro Nogueira e Rodrigo Cássio*
A “cabine” é uma sessão de cinema antecipada para que os jornalistas, críticos de cinema e convidados possam ver o filme antes da estréia. Fomos ver o filme na sexta-feira, 9h da manhã, no Cine Lumière. Na sessão, tivemos a idéia de realizar um diálogo e publicar nos nossos blogs (vistoseescritos.wordpress.com). Vamos ao debate:
Lisandro Nogueira: O que gostei mais no filme "Anticristo" de Lars Von Trier, foi a possibilidade de ver um bom cinema. Gosto de um "bom cinema": aquele que provoca, dá prazer estético, independente do tema ou conteúdo, e que me faz sair bem do cinema. Apesar do "terror" tão propalado, saí muito bem do cinema. Como vimos o filme juntos, às nove da manhã, na sessão cabine, observei que você também gostou do filme.
Rodrigo Cássio: Também gostei do filme. O que me chamou especialmente a atenção quando assistimos, e confirmei quando assisti pela segunda vez, à noite, foi a habilidade do Lars Von Trier em se apropriar de convenções como a do drama e do cinema de horror, levando adiante um preceito comum ao movimento Dogma 95, que foi, de fato, uma atualização do cinema narrativo clássico (a meu ver, a mais interessante alternativa contemporânea, nesse sentido). Por isso, o prazer de um "bom cinema" está ali: tanto pelas sensações que ele instiga no espectador, quanto em virtude de um deleite visual: Von Trier sabe como poucos conciliar a presença da câmera, na cena, e a direção dos atores. Você notou que a câmera está sempre "presente", construindo o sentido?
LN: Sim. Recordo-me da velha questão cinema clássico e cinema de arte: o primeiro nos coloca dentro da cena e fica difícil escapar e não se envolver; o segundo, propositadamente, nos afasta, nos coloca fora. Mas isso é uma generalização, pois depende muito do estilo do cineasta e até do contexto. O que fica claro é que Von Trier conecta sua câmera com o sentimento dos personagens, faz closes, acompanha o sofrimento; porém, nada leva ao sentimentalismo ou ao terror - como foi meu caso. Vejo beleza nas imagens e vejo uma "humildade" lancinante do Trier, diante da representação do sofrimento e da dor.
RC: Lembro de dois momentos que podem ilustrar o fato de que as opções de um cineasta (isso a que podemos chamar "estilo") são determinantes para um bom filme. Mesmo quando diante de intenções já extremamente codificadas pelo cinema hegemônico (como levar o espectador a sentir compaixão, expectativa ou medo), o Von Trier tem o cuidado de inserir "nuances" na encenação e nas personagens, evitando que elas fiquem opacas ou unidimensionais. Na primeira parte do filme, quando travam um duro diálogo na cama, o casal fecha a cena com um beijo (o que seria contraditório, em princípio). Já no final, no momento exato em que o marido consegue se desprender do objeto que estava limitando seus movimentos, há um corte para a esposa, em primeiro plano. A expressão da atriz, nesse quadro, contraria tudo o que poderíamos esperar da cena (a nossa expectativa), sendo ela um desfecho da ação libertadora do marido. Há uma inusitada ternura no olhar daquela mulher: a complexidade psicológica da personagem é refletida no âmbito da aparência, isto é, no âmbito da imagem (e cinema é imagem, não pode prescindir delas).
LN: Então concordamos que estamos diante de um "cinema autoral": estilo próprio e visão de mundo (tema e conteúdo) singular. Outra cena que me chamou atenção e que revela o "estilo próprio": a queda da criança. Quantas vezes lemos e ouvimos nos livros e nas aulas de cinema que a "câmera lenta" deve ser usada com parcimônia? Ela já se tornou óbvia e saturada. Mas no filme ela ganha vida, instante que permanece. E mais: música e câmera lenta em filmes de estrutura clássica são sinônimos de sentimentalismo ou de exaltação de cenas de ação. Em "Anticristo" é o contrário: música e câmera ensejam beleza e modos de sofrer. E nos ensinam a compartilhar tanto sofrimento sem apiedarmos de nós mesmos. Mas isso só é possível porque não há carga nos sentimentos, e tudo passa longe do melodrama.
RC: Se "autoria" é a extrapolação dos limites do cinema industrial, temos um "autor", sem dúvida. E isso do interior deste mesmo cinema, de algumas das suas características mais gerais. Você menciona o melodrama, que está ausente em "Anticristo". Podemos partir desse dado para analisar não somente o lugar do filme no cenário atual, como do Dogma 95. Sabemos que o melodrama é um gênero profundamente ligado ao cristianismo. O Dogma 95 também, a seu modo: vide o manifesto "Voto de Castidade" e o forte caráter moral dos seus "dez mandamentos". Em "Anticristo", Von Trier opera com uma simbologia cristã que, por um lado, dispensa as facilitações do melodrama, mas, por outro, não se define incisivamente como um cinema de ruptura, aproveitando a estrutura do suspense e do horror como um "manancial" para a expressão do estilo. Há uma ambiguidade latente: estamos diante de uma narrativa mitológica que discursa sobre a natureza humana, admitindo a metafísica cristã como a sua raiz, mas rejeitando certos vícios formais pelos quais essa metafísica tenta se sustentar ainda agora (o mercado é um fator de corrupção do discurso, e é abandonado - o melodrama tem que ceder). "Anticristo" é uma espécie de "Adão e Eva" moderno, no qual a mulher que deflagrou o bem e o mal, a partir do seu gesto pecaminoso, deve ser "curada"; não mais pela religião, mas pela terapia, valendo inclusive a piada com o prematuro "envelhecimento" da psicanálise como uma prática de constituição dos sujeitos. Não é de estranhar que o tratamento da mulher em "Anticristo" tenha provocado reações contrárias desde Cannes.
LN: Eu aprecio o cineasta não utilizar as ferramentas de um "cinema de ruptura" (cinema de arte), como no caso de "Anticristo". Penso que cineastas que se utilizam da estrutura clássica de narrar, sem se fixar no melodrama, conseguem ao mesmo tempo a comunicação com o público, tão importante, e trabalhar as imagens de forma não convencional. Sobre o feminino, a principal teórica do feminismo no cinema, Laura Mulvey, escreveu dois textos fundamentais* nos quais aponta a importância da psicanálise para entender o "olhar masculino" do cinema hollywoodiano, assim como o sentido de libertação para a mulher nos filmes de arte. Mulvey rejeitaria completamente esse filme. Ele, o filme, questiona os limites da psicanálise, mostra a importância do homem nas relações com a mulher (há uma queda da função paterna no mundo moderno) e para o equilibrio das relações sociais e familiares. Certamente é um filme que pode nos aprisionar no extra-filme [o filme é utilizado somente como ilustração para debater e discutir teorias de várias áreas do conhecimento; evita-se "entrar no filme", ou seja, interpretar e descrever e analisar a imagem, a narrativa e os componentes cinematográficos]. Ou seja, ficaríamos discutindo teorias (inclusive cinematográficas) sem "entrar" propriamente no filme. Comentamos que os psicanalistas vão nadar de braçada e realizarão aquelas explanações, sempre interessantes, mas quase sempre distantes do filme em si.
RC: Seria pouco frutífero se o debate sobre “Anticristo” se realizasse unicamente com o foco no extra-fílmico. Concordo que há esse risco, pois o filme toca em temas duros e potencialmente polêmicos: a culpa, o sexo, a violência. Pulsão de vida e pulsão de morte conduzem a narrativa. No entanto, não vejo o filme, em si mesmo, como polêmico. Von Trier é sincero, e busca as imagens capazes de produzir sensações e ideias que o espectador é levado a esconder de si mesmo, quando absorto pela felicidade impassível do cinema industrial. Somente um cinema mais ousado poderia deferir esse conteúdo à consciência, trabalhando diretamente com um imaginário oriundo dos próprios gêneros industriais (as cenas de tortura do cinema de horror, por exemplo). Nesse sentido, “Anticristo” é um filme muito realista: ele quer levar o homem ao reencontro com uma possível natureza. Nele, as imagens existem para isso.
• Lisandro Nogueira é prof. de cinema na Facomb-UFG e Rodrigo Cássio é formado em jornalismo e filosofia e mestrando em cinema na FAcomb-UFG.

* Os dois textos de Laura Mulvey são: Prazer Visual e Cinema Narrativo (In: XAVIER, Ismail. A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983) e Reflexões sobre “Prazer Visual e Cinema Narrativo” (In: RAMOS, Fernão. Teoria Contemporânea do Cinema. São Paulo: Senac, 2005, volume 1). Mostrar mais ▼